O impacto político da Páscoa

Nós necessitamos de ideias políticas. Nós necessitamos de estruturas de governo. Nós necessitamos de boas práticas, que ajudem a construir uma sociedade mais justa. Mas principalmente, nós precisamos de Cristo.

A mera insinuação de que a Igreja tem uma voz política faz soar alarmes na cabeça de muitos, como uma invocação automática de conúbios entre bispos e governantes, da Inquisição, ou da dúbia proximidade – quando não cumplicidade – entre a Igreja e regimes totalitários. Estando enraizada na realidade, o sucesso desta narrativa depende de um eclipse: o da complexidade da história. Porque essa mesma Igreja pecadora avançou o conceito de guerra justa para evitar os constantes conflitos motivados pela ganância, introduziu a defesa da dignidade universal do ser humano quase duzentos anos antes da Revolução Francesa (o ius Gentium de Francisco Suarez sj), foi a voz do povo na luta contra os governos totalitários na América Latina na segunda metade do século XX, e é também do seio do cristianismo que brota o movimento de direitos civis norte-americano.

Mesmo nos últimos dez anos, diante da desatenção do poder político e imprensa ocidentais, coube à Igreja dar voz ao sofrimento do povo africano. Foi assim na Nigéria, em relação ao Boko Haram. Foi assim em Moçambique, com D. Luiz Fernando Lisboa a tentar chamar a nossa atenção para Cabo Delgado. Foi assim em janeiro deste ano na Tanzânia, quando os bispos, diante do negacionismo do governo, apelaram a que se levasse a sério a pandemia e que se tomassem todas as precauções necessárias.

Esta síntese que apresento não branqueia a história da Igreja Católica, não a isenta, nem a desculpa. A Igreja assume as suas culpas pelas atrocidades e erros, do passado e do presente, e deve estar sempre e cada vez mais vigilante a todos os sinais de abuso e manipulação da nossa fé. Esta seleção que faço pretende somente sublinhar um simples facto: a história é complexa. E sempre que tentamos olhá-la dividindo-a simplisticamente em opressores e oprimidos, privilegiados e explorados, puros e pecadores, encontraremos o mesmo resultado: uma fraca compreensão do fenómeno humano, e o perpetuar de sistemas injustos, pois a verdade escapar-se-á por entre os nossos dedos.

Esta síntese que apresento não branqueia a história da Igreja Católica, não a isenta, nem a desculpa. A Igreja assume as suas culpas pelas atrocidades e erros, do passado e do presente, e deve estar sempre e cada vez mais vigilante a todos os sinais de abuso e manipulação da nossa fé.

O adversário da humanidade não se personaliza num homem, nem ganha corpo numa classe, num género, na propriedade privada, numa raça, nacionalidade, religião ou orientação sexual. O adversário da humanidade é o pecado, isto é, sucumbir à tendência de buscar o seu próprio interesse – anteriormente chamávamos-lhe concupiscência – indiferente ao seu próprio bem e ao dos outros. O pecado tem a sua raiz numa forte motivação humana: o medo da morte ou, se preferirem, da irrelevância das nossas vidas. No atual momento ocidental, é amplamente difundida a ideia de que a nossa vida tem somente o sentido que cada um lhe dá. Tão amplamente difundida como categoricamente negada pelas nossas ações de cada dia, em que buscamos constantemente confirmação e validação das nossas vidas na busca da justiça e do bem em sociedade.

Nós necessitamos de ideias políticas. Nós necessitamos de estruturas de governo. Nós necessitamos de boas práticas, que ajudem a construir uma sociedade mais justa. Mas principalmente, nós precisamos de Cristo. Porque nenhuma ideia política, nenhuma estrutura de governo, e nenhuma prática é imune à concupiscência humana. Só na graça de Deus podemos encontrar a luz e a força para levar uma vida virtuosa. Este é o centro da mensagem do Evangelho: em Cristo, somos libertados dos poderes do pecado e da morte sobre nós; libertados para uma vida no Espírito, em busca do bem e da justiça, colaboradores de Deus na construção do Reino. A fé cristã é indissociável do impacto político da Páscoa.

Porque nenhuma ideia política, nenhuma estrutura de governo, e nenhuma prática é imune à concupiscência humana. Só na graça de Deus podemos encontrar a luz e a força para levar uma vida virtuosa.

Urge a pergunta: porquê? Porque Cristo é tão disruptivo hoje como o foi em Jerusalém, Atenas, Roma, nas Américas, na Oceânia, em África ou na Ásia. Cristo, não a Igreja, tem a capacidade para romper com as tendências relativistas e individualistas da modernidade e o potencial de ir além das tendências totalitárias de antanho, reconciliando em si mesmo escuridão e luz, conflito e harmonia, ferida e regeneração. Por isso mesmo, a Igreja, povo de Deus a quem o Evangelho foi confiado, justa e pecadora, deve constantemente voltar os seus olhos para Cristo na oração, e rezar como quem entra num santuário de emancipação de todos os grilhões.

A excecionalidade da visão cristã nasce do drama do Deus incarnado, nascido de Maria, que experimenta a fragilidade que depende de uma mãe, que come, bebe, ri e chora, que ama e que experimenta a angústia, que é torturado e morto por ser incompreendido, e mais importante, ressuscita. Na experiência da sua morte, Ele experimenta a mais profunda solidão e isolamento de Deus na chamada descida aos Infernos, solidarizando-se assim com a vida de todos os pecadores, experimentando o mais radical afastamento de Deus, e abrindo à luz de Deus todas as experiências humanas. Nele, toda a realidade é assumida e redimida, num evento de reconciliação. Através da sua ressurreição, nem os limites do pecado nem o medo da morte, são obstáculos no nosso caminho de realização, pois Ele escancara as portas do sentido para todos: levar uma vida bela, fazendo o bem, é a verdade inscrita no coração da matéria.

O ser humano, feito à imagem de um Deus trino, brota, como toda a Criação, de uma comunhão de três pessoas divinas, onde há harmonia e diferença. E esta comunhão dá-se porque há diferença: a diferença não é uma brecha, a diferença não é uma rutura, mas a possibilidade de relação. É do espaço de relação livre e amorosa entre o Pai e o Filho no Espírito que a Criação se dá. E esta origem marca de tal forma a realidade da Criação que a fissura não é mais um abismo, mas a ferida do Crucificado, de onde jorra água e sangue, bênção de Deus para todos e participação na vida divina, onde reconhecemos o Filho.

Cristo, revelação do Pai pelo Espírito, verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, põe-nos no caminho da transcendência sem rivalidade com Deus e com os demais homens, abre a possibilidade de fraternidade com todos, independentemente do género, da raça e da pátria. E o caminho desta Revelação só se faz através da não-violência, da resistência ao mal através da ousadia de arriscar o bem. O mundo insiste em erguer multidões de crucificados, onde quase tudo é permitido e nada é perdoado, e a Igreja cede demasiadas vezes a esta tentação. Mas o caminho cristão é o da misericórdia. Só o amor, vivido em beleza, nos pode salvar, isto é, de experimentar definitivamente o bem e a verdade.

Por isso podemos dizer que só em Cristo a humanidade encontra o coração do seu mistério, e só em Cristo pode abraçar o paradoxo de se receber de Deus e dos outros. Tal só se torna óbvio aos olhos da fé, o que não nos deve levar a perder o ânimo, mas sim a assumir o compromisso de colaborar na construção da aliança entre indivíduo e comunidade, entre sociedade e Criação, entre a liberdade de cada um e a responsabilidade pelo todo.

Através de Cristo, podemos ver e construir o mundo. Em Cristo, podemos ultrapassar as rivalidades, abrir a porta da fraternidade, num caminho de não-violência e misericórdia. Mas tal exige um constante afinar do olhar.

A liberdade como autonomia radical do «eu» leva-nos a uma sociedade solipsista, que é capaz de se unir quando diante da agressão, mas com grandes dificuldades em reconciliar-se e propor um projeto alternativo de existência. É através do domínio de si, e não da afirmação do eu, que nos assumimos plenamente humanos. E isto não é repressão da identidade, mas sim garante do seu florescimento, numa ponderação dos instintos da mente e do corpo. A liberdade é genuína na sua orientação para o bem e para a verdade, e implica um compromisso com estes, um compromisso que vai além do cumprimento de condicionamentos exteriores como a lei, ou da submissão a pressões interiores como a culpabilidade. É no paulatino colmatar da distância entre quem sou e quem desejo ser, numa ação performativa que tem lugar no espaço social de encontro com os meus pares, que a minha identidade é forjada.

Através de Cristo, podemos ver e construir o mundo. Em Cristo, podemos ultrapassar as rivalidades, abrir a porta da fraternidade, num caminho de não-violência e misericórdia. Mas tal exige um constante afinar do olhar. Estilhaçadas que estão as certezas da modernidade, e num momento em que descobrimos o sabor acre do ceticismo pós-moderno, esse espaço selvagem que se chama oração cristã é o único lugar que nos permite escapar à colonização das diversas ideologias e à sua vontade de nos dominar. Um Deus que encarna, que se faz criança, não pode ser visto como uma estrutura de poder, pois a sua oração, na pessoa de Jesus, é uma que leva a abdicar das forças, como vemos no Horto. A oração é um espaço de vulnerabilidade potenciador de completude, mesmo quando resulta num despojar de si mesmo que pode conduzir ao martírio.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.