À saída do restaurante numa zona movimentada de Londres, os participantes de um Congresso Internacional de Editores ficaram surpreendidos com a pouca animação do local que, havia duas horas, fervilhava de gente alegre e ruidosa. Explicou o anfitrião: era o dia e a hora a que passava na BBC a série A Vida na Terra (Life on Earth), de David Attenborough, e não só a capital parava, mas todo o país. Um fenómeno inédito.
Nenhum estrangeiro tinha ouvido falar deste autor, que começara a sua carreira de naturalista estudando as tribos na Nova Guiné, Madagáscar e no território setentrional da Austrália, em Journeys to the Past. Do ser humano passou para os animais e tornou-se uma figura admirada e premiada a nível mundial: publicados pela Collins, surgem os livros A Vida na Terra (Life on Earth), O Planeta Vivo (The Living Planet), The Trials of Life, de que foram realizadas séries televisivas pela BBC. Todos os editores se entusiasmaram e a seu tempo acabaram por negociar os direitos das obras para os seus idiomas.
Impossível esconder tal paixão pela vida
Em Portugal foi editado o primeiro título da Collins em 1980, a que se seguiu O Planeta Vivo em 1985. Dado o enorme êxito de vendas do primeiro volume, Sir David, então já nobilitado pela rainha Isabel II de Inglaterra, aceita com a maior simplicidade o convite para vir a Lisboa participar no lançamento do seu segundo livro em português. Três dias em que maravilhou os fãs portugueses (já muitos, pois, entretanto, tinha passado a série na televisão) imitando o voo das aves, referindo as histórias que viveu com os animais de todos os habitats nos diversos continentes. Contou o susto que teve quando, ao mergulhar no oceano Índico, um grupo de tubarões investiu contra ele, confundindo-o com um alemão excêntrico que habitualmente lhes levava comida. Os jardins zoológicos ingleses, sabendo que a família partilhava o mesmo entusiasmo, confiavam-lhe os jovens animais órfãos em risco de vida, especialmente primatas, que a mulher carregava ao peito, contra o coração, como fazia aos filhos.
Na sua breve estada em Lisboa, gravou gratuitamente um programa para a RTP na Estufa Fria (o mau tempo impediu as suas primeiras opções: o estuário do Tejo ou as dunas do Guincho). Todos os jornais diários e semanários da altura citaram passos das entrevistas do autor. Cito uma breve passagem de A Capital de 25/1/85: “Revelando-se razoavelmente otimista quanto à preservação do ambiente, o autor de O Planeta Vivo, membro de várias organizações internacionais de defesa da vida selvagem e de preservação do meio ambiente, afirmou ainda que gostaria de ver chegar o tempo em que não fosse necessário empregar a palavra ‘conservação’ para defender o meio ambiente, por tal fazer já parte do modo de vida das pessoas que o integram.” O Jornal de Letras deu um destaque muito especial com uma chamada na primeira página mostrando o retrato do autor e a frase “O Planeta Vivo”: vivo, o planeta é magnífico, exatamente o título da excelente recensão em dupla página de Clara Pinto Correia.
Diga-me, Sir David, há algum animal de que não goste?
Nos três dias mudou de gravata: eram de cor viva e lisa, salpicadas ora com pinguins, ora com aves ou répteis, chamando a atenção para espécies em extinção. Já no terceiro dia, com o à-vontade que se cria no convívio com uma personalidade tão humana, fascinante e generosa, a editora portuguesa ganhou coragem para lhe pôr a questão que não ousou no início. Diga-me, Sir David, há algum animal de que não goste? Parou uns segundos, embaraçado, e respondeu baixo. Há, de facto, um. E digo-lhe só a si qual é, e a razão da repugnância que me provoca. A razão é simples: enquanto todos os animais são criaturas de Deus, magníficas nas suas formas de viver e sobreviver, este, a ratazana dos esgotos, é criatura do homem, da sua irresponsável relação com o ambiente.
Estávamos em 1985. Desde então, o prestígio de Sir David não parou de aumentar, alimentado por programas televisivos com técnicas de filmagem cada vez mais avançadas. Pela sua carreira de divulgador do mundo natural foi largamente reconhecido. Reformou-se aos 90 anos, há dois anos. E, se as imagens que nos trouxe nos abriram os olhos para a variedade insuspeitada de formas de vida, resta-nos desejar que elas tenham contribuído para o apreço pelo planeta azul, que agora gostamos de chamar, como o Papa Francisco, a casa comum.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.