O fim da fé na ressurreição

Daí ser possível afirmar que a ressurreição de Cristo e a ressurreição dos mortos não são duas, mas uma e a mesma realidade, que no total não é outra coisa senão a verificação da fé em Deus à luz da História.

O ritual das exéquias cristãs afirma, nas notas preliminares, uma frase desconcertante: “ao celebrarem as Exéquias dos seus irmãos, procurem os cristãos afirmar sem reservas a esperança na vida eterna” (praenotanda n.2).

É verdade que não é difícil para muitas pessoas admitirem uma existência post-mortem de algum tipo, seja a imortalidade da alma, seja uma outra forma de existência espiritual qualquer. Contudo, quando toca à crença específica numa Ressurreição dos mortos essa profissão não é tão imediata, mesmo entre cristãos. Talvez porque o seu sentido original se foi de tal modo esbatendo do nosso imaginário pessoal e coletivo, ou misturando com uma espécie de ideia de imortalidade abstrata ou de reencarnação espiritual, que quando dizemos ressurreição sentimos no nosso íntimo que não sabemos bem o que estamos a dizer. E isto é problemático, porque não só a ressurreição ocupa um espaço central entre os artigos da fé cristã, como remete à noção mesma de Deus, um Deus de vivos, cujo poder ultrapassa o limiar da morte. Falar da ressurreição não é só falar de uma eventual vida após a morte. É muito mais do que isso: sem a Ressurreição não é possível compreender a noção cristã de Deus. Sem a ressurreição, não é possível conceber o Deus de Jesus Cristo.

Falar da Ressurreição não é só falar de uma eventual vida após a morte. É muito mais do que isso: sem a Ressurreição não é possível compreender a noção cristã de Deus. Sem a Ressurreição, não é possível conceber o Deus de Jesus Cristo.

As primeiras comunidades cristãs tinham clara noção disto. Para elas, a fé na ressurreição era a fonte da esperança irreprimível, a pedra que suportava toda a sua existência, as suas relações e a resiliência na vida ordinária e no meio das perseguições. São Paulo, seguindo essa intuição, coloca este ponto no centro da sua mensagem: o que ele anuncia é o evangelho da ressurreição dos mortos, como consequência necessária da ressurreição de Jesus (1 Cor 6,14; Rm 8,11; 1 Tes 4,14). Negar a ressurreição dos mortos é negar a de Jesus (1 Cor 15,13) e negar a de Jesus é reduzir a esperança cristã ao vazio (1 Cor 15,17).

Mas “exprimir o inexprimível” esbarra sempre nos limites da nossa linguagem. Assim, o Apóstolo dos gentios, consciente disso, recorre a uma analogia para desafiar a nossa imaginação: assim como há uma desproporção entre uma semente deitada à terra e a vida vegetal que dela brota, de igual modo o corpo morto ressuscitará num corpo singular, pela ação vivificante e inefável de Deus. Não deixa de ser curioso o facto de São Paulo classificar este corpo ressuscitado como um “corpo espiritual”, um corpo incorruptível nascido da corrupção. É uma verdadeira corporalidade que, no entanto, é a expressão pura do Espírito, o que em si mesmo, parece uma contradição em termos. É uma expressão totalmente acientífica e que parte da intuição imediata de um corpo que será levantado, não pelo desejo íntimo da vontade e das disposições humanas, mas fruto da liberdade e da soberania de Deus.

Esta invocação da dimensão corporal não é de todo inocente. É o modo de São Paulo salvaguardar e colocar o Ser humano como objeto central da ação salvífica de Deus. Mas isto só é compreensível se a nossa interpretação de “corpo” ultrapassar uma visão imediata, estrita e redutora. Pelo contrário, deve ser pensado como ponto de origem a partir do qual o ser humano estabelece todas as suas relações e exerce a sua liberdade, como uma realidade orgânica entendida, não como algo externo, que se possui, mas como algo que nos define e identifica. É a realização definitiva do Homem Todo diante de Deus, que lhe concede a vida eterna.

Ratzinger tem razão, ao afirmar que a fé na ressurreição não aparece como parte de uma especulação sobre cosmologia ou sobre a teologia da história, ou outra coisa abstrata qualquer, mas é relativa a uma pessoa, a Deus em Cristo.

Em Cristo o escondido torna-se presente. Da nossa parte, vislumbrar para lá do véu da morte será eventualmente meditar sobre os mistérios da vida de Cristo, pensado à luz da Páscoa e que reflete algo desse modo Novo de viver. A ressurreição é um assentimento a um futuro do Homem e do Cosmos, onde Deus se manifesta Senhor da História, e um convite de participação numa realidade dialogal, concebida numa conceção alargada da nossa própria história pessoal. Daí ser possível afirmar que a ressurreição de Cristo e a ressurreição dos mortos não são duas, mas uma e a mesma realidade, que no total não é outra coisa senão a verificação da fé em Deus à luz da História.

E é justamente essa fé e a adesão pessoal subsequente que permite a entrada na vida eterna e que torna compreensível as palavras de Jesus a Marta, no episódio da ressurreição de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que acredita em mim, mesmo que morra, viverá” (Jn 11, 25). Vista deste prisma, a ressurreição não remete simplesmente para um acontecimento longínquo e apocalíptico, no final dos tempos, mas algo inaugurado e possível desde já.

A fé, que implica o contacto entre Jesus Cristo e eu, possibilita, desde já, a vitória sobre a morte, remetendo para uma imagem que, como num espelho, re-envia de volta uma noção de Deus que se vai clarificando, numa espécie de círculo que mostra a esperança definitiva de Deus para o mundo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.