“O pluralismo e a diversidade de religião, cor, sexo, raça e língua são expressão de uma sábia vontade divina, com que Deus criou os seres humanos” – lê-se na declaração conjunta assinada pelo Papa Francisco e pelo imã de Al Azhar, no passado dia 4 de fevereiro, por ocasião da histórica viagem do primeiro romano pontífice aos emiratos árabes, em ordem a uma maior compreensão e entendimento entre os crentes destas duas grandes religiões abraâmicas.
Como é sabido, o Papa Francisco tem procurado abrir novos caminhos no diálogo ecuménico e também inter-religioso. No primeiro sentido, entrevistou-se, em Havana, com o patriarca de Moscovo, com o qual subscreveu uma declaração conjunta que, se por um lado parecia facilitar as relações, nem sempre pacíficas, entre católicos e ortodoxos, por outro causou algum desconforto entre os católicos ucranianos, mas é de crer que eles próprios serão, senão já, pelo menos a médio ou longo prazo, os principais beneficiários de uma maior cordialidade entre Roma e Moscovo.
Como é sabido, os russos católicos foram forçados, por Stalin, a integrar a Igreja ortodoxa russa. Depois do desmoronamento do regime soviético, os católicos russos tiveram grande dificuldade em lograr o reconhecimento do seu direito à existência e prática religiosa em comunhão com a Igreja romana, bem como à devolução dos seus templos, que o estalinismo confiscou, para os entregar aos ortodoxos. Desde sempre, os bispos de Roma defenderam estes seus fiéis, exigindo para estas comunidades cristãs a mesma liberdade de que gozam os fiéis ortodoxos nos países ocidentais de tradição católica maioritária. Francisco, ao investir num melhor entendimento entre ortodoxos e católicos, favorecendo as relações da Santa Sé com o patriarcado ortodoxo de Moscovo, está também a servir os interesses das comunidades católicas locais.
Foi também este, de certo modo, o seu modo de proceder em relação aos católicos chineses, organizados em duas comunidades eclesiais que, embora homónimas, na realidade eram antagónicas. Com efeito, a Igreja dita clandestina era a única que mantinha a união com Roma, que nomeava os seus bispos, os quais só de forma oculta podiam exercer o seu ministério. A par desta Igreja católica, a única verdadeiramente merecedora deste qualificativo, as autoridades comunistas chinesas promoveram uma igreja patriótica, controlada pelo Partido Comunista chinês. Os bispos patrióticos eram na realidade cismáticos, mas Francisco decidiu reintegrá-los na Igreja, restabelecendo com eles a comunhão eclesiástica.
Ao privilegiar o bom entendimento político com as autoridades chinesas, Francisco pretendeu, sobretudo, conseguir a unidade de todos os católicos chineses, numa única Igreja, mesmo que, por agora, esta esteja sob o poder comunista. O dom da unidade de todos os católicos chineses é certamente preferível à divisão, até agora existente, entre católicos oficiais e católicos clandestinos. Certamente estes últimos, que pagaram tão cara a sua fidelidade a Roma, terão tido grande dificuldade em acatar as últimas decisões da Santa Sé a este respeito, mas é de esperar que, com a mesma heroica fidelidade com que, durante o regime maoísta, permaneceram fiéis a Roma, também agora saberão manter-se unidos ao Papa. Com certeza que a unidade da Igreja católica na China é um bem maior do que o seu sofrimento, por doloroso que este seja.
A Santa Sé tomou a iniciativa de levantar as excomunhões em que tinham incorrido os bispos ditos ‘patrióticos’, pelo facto de terem sido ordenados sem mandato pontifício. Francisco fê-lo incondicionalmente. Supunha-se que este seu gesto de boa-vontade seria correspondido pelas autoridades chinesas, das quais se esperava uma atitude mais conciliadora com a Santa Sé e para com os católicos, mas a verdade é que ante esta atitude da diplomacia vaticana, Pequim endureceu a sua política anticatólica, mas como depois da tempestade vem sempre a bonança, há que ter esperança em melhores tempos para os católicos chineses.
Também era de supor que os bispos ex-cismásticos, que Francisco misericordiosamente perdoou e acolheu como membros de pleno direito do colégio episcopal, correspondessem a essa benevolência papal, com a pedida declaração de adesão ao magistério da Igreja e ao sucessor de Pedro. Ainda não constou, pelo menos publicamente, a sua adesão formal aos ensinamentos pontifícios e à pessoa do papa. É provável, contudo, que a mesma possa já ter ocorrido, mas de forma discreta, para evitar possíveis retaliações por parte das autoridades chinesas, muito ciosas da sua independência e que, por isso, veriam com maus olhos que a hierarquia da respectiva Igreja católica publicamente manifestasse a sua obediência ao Papa que, para todos os efeitos, é um Chefe de Estado estrangeiro.
Mas, como o caminho para a desejada unidade só pode ser alcançado por via da liberdade, ao mesmo tempo que a Igreja católica intensifica o seu trabalho missionário, deve promover o bom entendimento entre todas as crenças, segundo o espírito dos encontros de Assis
Por último, a afirmação de que “O pluralismo e a diversidade de religião, cor, sexo, raça e língua são expressão de uma sábia vontade divina, com que Deus criou os seres humanos”, agora subscrita pelo Papa Francisco e pelo imã de Al Azhar, no passado dia 4 de fevereiro, parece também inscrever-se no contexto de uma nova política nas relações entre a Igreja católica e o Islão. Tendo em conta que a grande maioria dos católicos que actualmente são perseguidos o são sobretudo em países islâmicos – recorde-se, por exemplo, o caso de Asia Bibi – é compreensível que a diplomacia da Santa Sé procure estabelecer um relacionamento mais afável com os países muçulmanos. Mas uma tal política não deve ser entendida como uma renúncia ao mandato apostólico universal, de que Cristo incumbiu a sua Igreja (Mt 28, 19-20).
Quando se diz que alguma coisa acontece, pode-se sempre dizer que Deus a quer, nem que seja apenas no sentido de que a permite. Não seria razoável afirmar que Deus positivamente quer o erro, a falsidade, a mentira ou o pecado. O pluralismo religioso é tolerado por Deus, na medida em que o Criador quer a liberdade dos homens, mas não no sentido de que Deus positivamente quer que assim seja. O pluralismo e diversidade das religiões acontece, pois, por defeito do conhecimento e da liberdade humana, mas “Deus, nosso Salvador”, “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 3).
A Igreja deve também tolerar esse pluralismo e diversidade, mas sem desistir do seu intuito de a todos iluminar com a luz do Evangelho, porque o propósito de Cristo e, portanto, também da sua Igreja, não é o da pluralidade das religiões, mas da unidade: “um só rebanho e um só pastor” (Jo 10, 16). Mas, como o caminho para a desejada unidade –primeiro de todos os cristãos, depois de todos os que creem em Deus e, por último, de toda a humanidade – só pode ser alcançado por via da liberdade, ao mesmo tempo que a Igreja católica intensifica o seu trabalho missionário, deve promover o bom entendimento entre todas as crenças, segundo o espírito dos encontros de Assis, promovidos por São João Paulo II, respeitando o pluralismo e a diversidade das religiões.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.