O direito constitucional ao aborto em França e os limites da lei

Quando um Estado promove como desígnio a eliminação das fronteiras da vida e das liberdades básicas, por maior consenso que exista, não há legitimidade que lhe valha.  

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Estas questões levam-nos diretamente aos fundamentos éticos do discurso civil. Se os princípios morais que sustentam o processo democrático não estiverem assentes, por sua vez, em nada mais sólido do que no consenso social, então a fragilidade do processo demonstrar-se-á em toda a sua evidência. Eis o principal desafio da democracia.

Bento XVI, Discurso no Parlamento de Londres, 17 setembro de 2010

 

O recém-proclamado direito constitucional ao aborto em França leva-nos a revisitar o fundamento moral dos Estados e da lei.

Na base da constituição dos Estados modernos está a ideia de que a pessoa e as famílias são anteriores ao Estado e que a comunidade política existe para as servir, e não o inverso, e para tutelar os seus chamados direitos inalienáveis, resumidamente descritos como: vida, liberdade e propriedade.

Este pensamento iniciou a modernidade europeia a partir do século XVI e, para o bem e para o mal, foi testado nos séculos seguintes, em especial no sangrento e de má memória século XX, sem aparentemente ter deixado claras as suas lições.

Vida, liberdade e propriedade podem ter uma abrangência adaptável às circunstâncias, nomeadamente as liberdades e a propriedade, mas não disponíveis na sua essência porque permitem às pessoas resistir às invetivas dos Estados tirânicos.

Por exemplo, a Revolução Americana foi legitimamente iniciada pela asfixia tributária imposta pela Coroa Britânica. Vemos isso também na resistência até ao sangue a todos os Estados totalitários, de ontem e de hoje, que procuram responder a todas as questões da pessoa humana não lhes deixando espaço de vida e apropriando-se da sua consciência.

No sugestivo livro “A banalidade do mal”, Hannah Arendt descreve exatamente esse processo de dissociação da própria responsabilidade moral pela obediência e um establishment ao qual se pertence, do qual se depende e que não se questiona. Hannah Arendt traz-nos à memória o fiel e eficaz funcionário de logística Adolf Eichmann, que diligentemente contribuiu para o holocausto sem um pingo de dúvida, questionamento e muito menos reticência.

Consagrar o direito constitucional ao aborto é assumir como meta nacional a ingerência direta na consciência humana e a agressão ao direito pré-político à vida. Ou seja, o Estado francês substituiu a moralidade dos atos humanos e fica com todo o poder para atropelar com o seu aparelho (também repressivo) a vida humana não nascida. Por isso mesmo, exige total oposição e resistência civil.

Baseado na ideia de que “a mulher tem direito a dispor do seu corpo como quer”, este direito constitucional proclamado por consenso desconsidera vários factos, entre os quais: a existência de uma outra vida, emergente e frágil; a responsabilidade pessoal pelos próprios atos e pela própria intimidade; a existência de outros meios, mais benignos para a própria mulher, para gerir a sua capacidade de conceber; e, sobretudo, a consideração de que a pessoa não é um átomo, mas uma teia de relações, heranças e promessas, das quais deriva e às quais dá forma.

Baseado na ideia de que “a mulher tem direito a dispor do seu corpo como quer”, este direito constitucional proclamado por consenso desconsidera vários factos, entre os quais: a existência de uma outra vida, emergente e frágil; a responsabilidade pessoal pelos próprios atos e pela própria intimidade; a existência de outros meios, mais benignos para a própria mulher, para gerir a sua capacidade de conceber; e, sobretudo, a consideração de que a pessoa não é um átomo, mas uma teia de relações, heranças e promessas, das quais deriva e às quais dá forma.

Tudo isto fica obnubilado, prometendo conferir à mulher um pseudopoder que, ao invés,  a transforma em algoz e na sua própria vítima, pela instrumentalização e pela eliminação do que a torna singular: a moralidade dos seus atos e a capacidade de gerar e preservar a vida.

Esta não é uma novidade em França, é talvez até mais um dos seus tiques históricos, vindos do racionalismo cartesiano que, combinado com o voluntarismo rousseauniano, deixa um lastro autoritário no chamado coração da Europa. Lembramos apenas como exemplo o malfadado Período do Terror da Revolução Francesa, onde o denominado “Comité de Salvação Pública” promoveu milhares de execuções discricionárias e sangrentas.

Quando um Estado promove como desígnio a eliminação das fronteiras da vida e das liberdades básicas, por maior consenso que exista, não há legitimidade que lhe valha.  Porque a pessoa e as suas liberdades pré-politicas são prioritárias em relação ao Estado e este deve servi-las e não esmagá-las.

 

“O primeiro direito a ser enunciado neste elenco é o direito à vida, desde o momento da sua conceção até ao seu fim natural, que condiciona o exercício de qualquer outro direito […]”

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 155

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.