O debate ético na democracia pluralista

Nas últimas décadas foram frequentes as chamadas de atenção dos Papas para os limites morais do mercado. Limites que nem todos acolhem, porque é mais cómodo deixar funcionar o mercado do que debater valores morais.

A democracia pluralista é um regime político muito especial. Ela não permite que aqueles que vencem uma batalha política liquidem os seus adversários e até admite a possibilidade de os perdedores de agora virem a ser os vitoriosos no futuro próximo. Um regime destes pareceria estranho a um homem da Idade Média ou até do Renascimento.

Até, pelo menos, ao início do século XIX não havia sociedades pluralistas na Europa. Cada país tinha o regime que os poderosos políticos e os governantes impunham. Existiam contestatários, claro, mas eram uma pequena minoria, muitas vezes perseguida pelo poder político. As guerras na Europa, nomeadamente as de origem religiosa, travavam a evolução para sociedades pluralistas.

Democracia na América

Mas fora da Europa, na América do Norte, esboçava-se no século XVIII uma primeira tentativa de convivência pacífica entre diferentes confissões cristãs. Muitos dos europeus que atravessavam o Atlântico e se instalavam em território americano, nessa altura ainda colónia britânica, ansiavam por não repetir ali as guerras de religião das quais haviam fugido. Ainda antes da independência dos EUA, declarada em 1776, conseguiram esse objetivo.

Uma das medidas mais ou menos tacitamente adotadas por quem então vivia na América do Norte foi afastar do espaço público discussões sobre religião. Decerto que a tolerância desta regra não escrita não se aplicava aos povos indígenas, que foram mais ou menos dizimados.

Foi assim possível a convivência pacífica entre protestantes e católicos em solo americano. Mas a eliminação do espaço público do confronto religioso, se permitiu a paz, teve um custo: afastou desse espaço a abordagem de temas envolvendo a religião e o sentido da vida – como aconteceu com inúmeras divisões sobre valores éticos.

Mas a eliminação do espaço público do confronto religioso, se permitiu a paz, teve um custo: afastou desse espaço a abordagem de temas envolvendo a religião e o sentido da vida – como aconteceu com inúmeras divisões sobre valores éticos.

Era então “mal-educado” levantar temas religiosos e questões éticas de fundo nas conversas privadas e nas intervenções públicas. O que, naturalmente, não promoveu o debate ético e político na democracia pluralista dos EUA.

Um consenso ético básico

Se as decisões em democracia dependem de maiorias de votos, nem por isso é admissível qualquer tirania por parte de quem dispõe de uma maioria. O que implica a existência de direitos, liberdades e garantias que não dependam de maiorias.

Um partido pode conquistar uma grande maioria parlamentar, mas não fica autorizado a decretar que determinadas pessoas ficam destituídas de certos direitos básicos. É esta uma distinção essencial entre partidos de direita democrática e partidos de extrema-direita, que, tendo obtido uma maioria, julgam poder impor medidas que violem direitos fundamentais.

Um partido pode conquistar uma grande maioria parlamentar, mas não fica autorizado a decretar que determinadas pessoas ficam destituídas de certos direitos básicos. É esta uma distinção essencial entre partidos de direita democrática e partidos de extrema-direita, que, tendo obtido uma maioria, julgam poder impor medidas que violem direitos fundamentais.

Mas como considerar democráticos esses direitos que nenhuma maioria é autorizada a violar? Através do debate ético e político que em cada momento forja um consenso sobre aquilo que não é suscetível de ser ignorado pelos governantes ou por quaisquer outros membros da comunidade nacional. Em democracia todos podem e devem participar na formação desse consenso ético e político básico, que também podemos designar por um consenso constitucional.

Em democracia todos podem e devem participar na formação desse consenso ético e político básico, que também podemos designar por um consenso constitucional.

Claro que um país não é uma academia de debate. E que as convicções sobre quais são os direitos básicos, que nenhuma maioria pode desrespeitar, se formam na sociedade atual de maneira frequentemente implícita. Todos contribuem por palavras e por ações para esse consenso. Mas nem por isso o debate ético explícito é menos importante.

O mercado e a moral

A tendência para afastar o debate ético e político atual sente-se nos EUA e em muitos outros lugares. Receando divisões, as pessoas evitam esse debate, reduzindo a política. Ora há muitas maneiras de limitar o debate público sobre temas que envolvam valores éticos.

Uma dessas maneiras é a aposta na tecnocracia. Os tecnocratas insinuam o alegado carácter científico das suas opções. Assim se protegem de críticas e evitam discussões. Mas a verdade é que as escolhas dos tecnocratas são tão políticas como quaisquer outras, só que deste modo ficam disfarçadas e dispensam o debate.

Mais importantes para limitar o debate ético e político são os partidários de que tudo, ou quase tudo, se resolva através da livre concorrência no mercado. O funcionamento do mercado passa a assemelhar-se a uma ordem natural, alheia a opiniões.

Mais importantes para limitar o debate ético e político são os partidários de que tudo, ou quase tudo, se resolva através da livre concorrência no mercado. O funcionamento do mercado passa a assemelhar-se a uma ordem natural, alheia a opiniões.

Alguns chegam mesmo a considerar que o mercado é uma democracia económica. Ora, como é óbvio, no mercado há quem tenha numerosos votos, por possuir muito dinheiro, ao passo que outros, mais pobres, não têm quase votos nenhuns.

Por isso penso que a doutrina social da Igreja acerta no essencial nesta matéria. Diante do risco concreto de uma ‘idolatria’ do mercado, esta doutrina ressalta-lhe os limites. Alerta o Compêndio de Doutrina Social da Igreja, no n.º 348, para que “o mercado livre não pode ser julgado prescindindo dos fins que persegue e dos valores que transmite a nível social. O mercado, de facto, não pode encontrar em si mesmo o princípio da própria legitimação”. E acrescenta o n.º 349: “a doutrina social da Igreja, ainda que reconhecendo no mercado a função de instrumento insubstituível de regulação no interior do sistema económico, coloca em evidência a necessidade de o ancorar à finalidade moral, que assegure e, ao mesmo tempo, circunscreva adequadamente o espaço da sua autonomia”.

Por isso penso que a doutrina social da Igreja acerta no essencial nesta matéria. Diante do risco concreto de uma ‘idolatria’ do mercado, esta doutrina ressalta-lhe os limites. Alerta o Compêndio de Doutrina Social da Igreja, no n.º 348, para que “o mercado livre não pode ser julgado prescindindo dos fins que persegue e dos valores que transmite a nível social. O mercado, de facto, não pode encontrar em si mesmo o princípio da própria legitimação”. E acrescenta o n.º 349: “a doutrina social da Igreja, ainda que reconhecendo no mercado a função de instrumento insubstituível de regulação no interior do sistema económico, coloca em evidência a necessidade de o ancorar à finalidade moral, que assegure e, ao mesmo tempo, circunscreva adequadamente o espaço da sua autonomia”.

Nas últimas décadas foram frequentes as chamadas de atenção dos Papas para os limites morais do mercado. Limites que nem todos acolhem, porque é mais cómodo deixar funcionar o mercado do que debater valores morais.

O poder do dinheiro

A invasão de inúmeras áreas da vida moderna pelo dinheiro é também uma forma de limitar o debate ético e político. Instintivamente, atendemos muitas vezes ao dinheiro para dar valor às coisas. Pois se o dinheiro até permite cálculos quantitativos que dispensam grandes aprofundamentos teóricos…

Um caso significativo da força do dinheiro, mesmo da parte de pessoas que perfilham ideias críticas do mercado, é a prostituição e os chamados “trabalhadores do sexo”. Muitas pessoas que se dizem de esquerda e também alguns países consideram o chamado trabalho sexual, incluindo a prostituição, uma atividade laboral como qualquer outra.

Em países como a Alemanha quem vende o corpo é um trabalhador que paga impostos, desconta para a segurança social, etc. Geralmente estes regimes legais são publicamente justificados pela proteção que alegadamente concedem às prostitutas. Essa proteção é importante, mas assim se esquece a natureza da atividade sexual que cobra dinheiro e desvirtua a sexualidade.

A esquerda clamou durante décadas contra a mercantilização da vida. E tinha razão para afirmar que as coisas que devemos considerar como realmente valiosas se encontram, em geral, fora do âmbito do dinheiro. Mas mostra-se incoerente quando defende que o sexo por dinheiro é algo aceitável.

Pluralismo de conceções éticas

Mas como será possível defender que a sociedade e o Estado assumam certos princípios morais se nas sociedades pluralistas em que vivemos as pessoas têm muitas e variadas conceções éticas e prioridades em matéria de valores? Nas sociedades sujeitas a autocracias não há debates livres, tudo é mais simples – as pessoas limitam-se a obedecer aos autocratas. Pelo contrário, nas sociedades pluralistas todas as pessoas podem influenciar decisões que, uma vez aceites por uma maioria, deverão ser respeitadas pela generalidade dos cidadãos.

Uma tentativa teórica de resolver o problema em democracia tem sido distinguir entre normas substantivas, visando o bem, e normas meramente instrumentais, ditando as regras do jogo e visando o justo. No limite, esta ideia defende o Estado neutro perante as várias e contraditórias conceções do bem que existem na sociedade. Noutra ocasião, classifiquei, e mantenho, a ideia de um Estado neutro como uma ilusão liberal.

Ainda quando um Estado decreta regras instrumentais estas remetem, mais ou menos implicitamente, para conceções substantivas do bem. Vejamos, por exemplo, as regras eleitorais em democracia, à primeira vista meras regras do jogo.

Ora a escolha de um determinado regime eleitoral envolve sempre referências a valores substantivos. Se a opção recai por círculos uninominais, como acontece no Reino Unido, ela decorre de uma forte ligação dos deputados aos seus eleitores, além de uma maior valorização da estabilidade governativa. Já um regime proporcional, como o que existe entre nós, traduz a prioridade atribuída a um maior grau de justiça nas votações, no sentido de refletir melhor o peso de cada uma das correntes políticas, ainda que com o inconveniente de ser mais difícil formar maiorias parlamentares que sustentem governos.

A carga ética das decisões políticas é mais visível quando se trata, por exemplo, de legislar sobre questões ditas fraturantes, que dividem a sociedade. Questões sobre o fim da vida (eutanásia), sobre a atitude perante a homossexualidade, sobre o aborto, sobre a droga, sobre o apoio às famílias de menores recursos, etc., põem em jogo aquilo que, para cada um, é valioso na vida.

A carga ética das decisões políticas é mais visível quando se trata, por exemplo, de legislar sobre questões ditas fraturantes, que dividem a sociedade. Questões sobre o fim da vida (eutanásia), sobre a atitude perante a homossexualidade, sobre o aborto, sobre a droga, sobre o apoio às famílias de menores recursos, etc., põem em jogo aquilo que, para cada um, é valioso na vida.

Não há relativismo

A democracia pluralista baseia-se no livre confronto das opiniões no espaço público. Aquilo que para a maioria das pessoas se torna um imperativo ético em regra faz vencimento e passa a concretizar esse imperativo em lei ou numa determinada ação política.

Será, então, que a verdade é uma mera questão de quem tem mais votos? Sim, a regra da maioria é uma regra democrática, mas não há relativismo. As pessoas e os partidos procuram obter maiorias para levarem as suas convicções políticas e éticas a influenciarem a realidade. Cada um pode e deve lutar no espaço público por aquilo que entende ser o bem para a sociedade, sem quaisquer relativismos.

A democracia comporta uma certa dose de humildade, que se liga à ideia de que ninguém tem o monopólio da verdade – os outros podem sempre acrescentar alguma coisa às nossas mais firmes convicções. E sabemos que, se formos vencidos, poderemos continuar a lutar pelos nossos ideais e aspirar a vê-los um dia vencedores.

A democracia comporta uma certa dose de humildade, que se liga à ideia de que ninguém tem o monopólio da verdade – os outros podem sempre acrescentar alguma coisa às nossas mais firmes convicções. E sabemos que, se formos vencidos, poderemos continuar a lutar pelos nossos ideais e aspirar a vê-los um dia vencedores.

A democracia também nos ensina a viver com a não aceitação, pelos outros, incluindo a maioria, dos nossos pontos de vista. Veja-se a Igreja Católica em Portugal; nas últimas décadas viu sucessivas maiorias parlamentares e sucessivos governos tomarem decisões contrárias a posições suas – mas não foi o fim do mundo. A tolerância também se revela na capacidade de conviver pacificamente com o que não nos agrada moralmente.

A tolerância também se revela na capacidade de conviver pacificamente com o que não nos agrada moralmente.

Moral e história

O consenso ético e político básico não é unânime nem é um consenso definitivo, evolui historicamente. O que nos repugna hoje, era há séculos atrás aceite. Se a sociedade tolerava há cem anos que pessoas com tendências sexuais diferentes da maioria fossem marginalizadas, no nosso tempo e na nossa sociedade tal já não é admissível.

É uma evolução, que tem tradução não só nos costumes como também nas leis e que a moral não pode ignorar. Trata-se do tal consenso básico sobre direitos fundamentais que referi mais acima.

Muita gente pensa que houve um declínio moral no mundo, que a moral de hoje é inferior à moral antiga. Vários trabalhos de psicólogos do comportamento indicam, porém, que essa convicção está muito generalizada, mas que ela não corresponde à verdade. Basta pensar na escravatura, aceite durante muitos séculos até pelo cristianismo.

A moral não é estática, o que também não significa que ela progride sempre em sentido positivo. Por isso se exige cautela quando se comparam convicções éticas entre diferentes períodos da história.

A moral não é estática, o que também não significa que ela progride sempre em sentido positivo. Por isso se exige cautela quando se comparam convicções éticas entre diferentes períodos da história.

Não há uma única decisão de um Parlamento ou de um Governo que não decorra, explícita ou implicitamente, de uma opção ética. O debate público é útil para tornar clara essa inspiração ética. A democracia pluralista vale a pena.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.