Medo é um instinto com muitíssima razão de ser: é um mecanismo de sobrevivência para o qual estamos biológica e socialmente programados. Os nossos cérebros até têm dois circuitos diferentes dedicados ao medo: um rápido, pela amígdala que desencadeia imediatamente uma reacção, e um, mais lento, pelo córtex pré-frontal que permite ponderação na reacção. Assim como no nosso cérebro, no nosso Portugal também há um circuito do medo. Este circuito, que é o rápido, está a ser explorado para política, e isso por si só, é má política. Eis como se explora o circuito rápido: primeiro dá-se desinformação com matemática infantil, ou com esmagamento por estatísticas ou com narrativas desenhadas para alarme. Isto assusta-nos [pudera, não se fala de outra coisa], e para isso há uma solução expediente que é anunciar restrições que aquietam o agora e dão a aparência de estabilidade. Estas medidas, que parecem a única solução sensata, aumentam a popularidade de quem as anuncia, o que cria mais incentivo para desinformar [e… repeat]. Não vou falar como isto não resolve o problema. Vou falar, isso sim, do nosso verdadeiro problema: não sabermos o que fazer na hora do medo.
Vamos ser honestos, é difícil não ter medo quando vemos os números que não param de subir, porque pensamos “eu posso fazer parte das estatísticas”. É difícil não ter medo quando vemos imagens de doentes entubados nos cuidados intensivos, porque pensamos “podiam ser os meus pais”. É difícil vermos imagens de caixões perfilados à espera de sepultura e não ter medo que, no fundo, tudo acabe. E onde procuramos saída? Não há estatísticas para diminuir o ‘abismo da existência’. Não há vacina para curar a nossa finitude ou erradicar a hora que há de chegar para todos nós. Também não há manobras políticas que acalmem a tempestade que estamos a viver. E pior: a nossa voz interior, nestes momentos, em vez de nos acalmar dizendo que está tudo bem, sobressalta-nos, por não saber para onde se virar. Mas procura (oh, se procura), porque as perguntas que faz já não vão a lado nenhum e se nada lhes responde, essa voz que nunca conseguimos enganar, não se vai contentar com mais uma mentira expediente: “Já não é hora de dormir! Estás no meio de uma tempestade e o raio pode cair em cima de ti”. E agora?
E é por estas e por outras, que a leitura que o Papa escolheu para a bênção Urbi et Orbi foi milimetricamente certeira por falar do medo, esse nosso verdadeiro drama [antes de fugir do meu #jesusmuggling mal disfarçado, dê-me uma hipótese… se preferir, leia de uma maneira metafórica o que vou dizer]. Nesta passagem, depois de ordenar ao vento e ao mar que se calassem, Jesus só fez duas perguntas aos discípulos aterrados: ‘Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?’ Não disse mais nada, só fez duas perguntas, que se respondem: a fé vence o medo. Ninguém é corajoso porque não sente medo, na melhor das hipóteses é um doido varrido sem noção de perigo. Para ser corajoso tem de se sentir medo e vencê-lo. E como é que sabe que pode vencê-lo, sem garantias de nada? Acreditando: a coragem está no (e é o) passo de fé. Não estou a dizer que, como acreditar vence medo, acreditar é verdadeiro. O que estou a dizer que é verdadeiro que acreditar vence medo. Uma subtil diferença que faz toda a diferença.
Se aquilo em que se acredita é verdadeiro ou não, é outra questão. O medo é só um catalisador de algo escondido numa das mecânicas de acreditar. Mas isso não torna falso nem o medo nem o acto de acreditar. Medo e fé são meios, não conteúdos, e neste caso, ‘the medium aint the message’. Era bom que não fossemos orgulhosos em relação ao medo que sentimos e levássemos mais a sério essa voz interior que procura. A alternativa é levarmos o medo como uma fraqueza de fabrico humana, o que não é (se fosse, sobrevivência era defeito e não feitio, e consequentemente, selecção natural não selecionava nada). Por muitas voltas que se dê ao prego, o mais natural[ista] a fazer é achar que medo é mais uma força elementar da nossa natureza do que o seu oposto. E, também, a coisa mais human[ist]a a fazer é responder-lhe com verdade. De nenhuma das maneiras nos escapamos do passo de fé para ter coragem, nem da coragem para dar o passo de fé! Voltamos ao córtex pré-frontal. Será coincidência termos este circuito? A escolha está em usá-lo ou não: dominar a amígdala ou ser dominado por ela.
Eis o porquê de escrever isto: tenho muito claro na minha cabeça que em breve terei de ir para a rua para me infectar, e assim, construir imunidade de grupo, é só uma questão de tempo até o governo perceber isso, se não o fizer brevemente fará muito mal (e fará também muito pior). Como eu, irão muitos para a rua. Coragem é-nos exigida (ponto). Por isso, achei que valia a pena lembrar as palavras que, antes do Dia D, o General George Patton dirigiu, num discurso memorável [cheio de asneiradas – que suprimi – mas, talvez por isso mesmo, memorável], às suas tropas: “Nem todos vocês vão morrer. (…) A morte não deve ser temida. A seu tempo, vem ter com todos nós. Todos temos medo da nossa primeira batalha. Quem disser que não tem é um aldrabão. Alguns são cobardes, mas combatem como os corajosos ou levam um enxerto de homens que estão com tanto medo como eles (…) Alguns superam o medo passado um minuto debaixo de fogo, outros levam uma hora, alguns precisam até de vários dias, mas um verdadeiro homem nunca deixará que o medo da morte se sobreponha à sua honra. (…) Cada homem é um elo vital nesta cadeia (…) O cobardola poderia pensar ‘Ninguém vai dar pela minha falta. Sou apenas um no meio de milhares’. E se todos tivéssemos pensado desta maneira, onde estaríamos agora? Cada homem cumpre o seu dever e serve o todo.” O intemporal aplica-se noutro tempo, não aplica?
Eu sei… isto é uma pandemia, não é a 2ª guerra mundial, mesmo para os peitos corajosos, os prospectos não parecem ser de uma morte gloriosa, mas enferma. Ainda assim, o medo está lá (e dada a nossa fragilidade pós moderna, talvez o medo ainda seja maior). Para além disso, também sei muito bem quem me encoraja a superar o meu medo e me mostra que ainda que morra, não perco a minha vida, mas ganho-a. Talvez, caríssimo leitor, o Jesus não lhe diga muito ou porque não acredita, ou porque para si isto da Igreja não passam de superstições, fazendo suas as palavras de Sam Harris: “Aconteceu? Provavelmente, quase de certeza que não!” É justo pensar assim, porque a história aparenta ser fantasiada e nenhum de nós estava lá para ver. Mas, porque não partir para a improbabilidade de tudo isto, pensando que ‘talvez possa ter acontecido’ em vez de dizer com certeza ‘isto não aconteceu’? Quem não viu, não pode afirmar com certeza que aquilo que não viu não aconteceu, pois não? Dar uma hipótese para as verdades escondidas se revelarem faz com que elas, a seu tempo, se revelem. E então…
“[…] despertando, ordenou imperiosamente ao vento e ao mar: ‘Cala-te e acalma-te!’ O vento serenou e fez-se grande calma.”
Para mim não é coincidência tudo isto ter acontecido até agora, na quaresma, e a grande decisão ter de acontecer depois do Domingo de Páscoa. Vai ser caso para dizer: “Aleluia!”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.