Heinrich Böll, autor alemão do pós-guerra, conta uma história que tem como pano de fundo uma terra devastada e desumanizada. Um jovem ferido de guerra a quem “eles” remendaram as pernas e deram uma tarefa em que pudesse estar sentado, conta de manhã ao fim do dia as pessoas que passam na ponte nova. “Eles”, que se orgulhavam do movimento da nova ponte, eram os técnicos de estatística cuja única tarefa era “dividir, multiplicar, percentualizar”, “contar quantas pessoas passavam por minuto e quantas pessoas dentro de vinte anos terão passado”. O jovem, para quem isto não tinha sentido, contava caprichosamente, ora acrescentando ora diminuindo o número de passantes, especialmente quando os seus olhos seguiam uma desconhecida muito jovem por quem se apaixonara.
Do outro lado da ponte, um outro jovem, que contava os carros, avisou-o de que o chefe da estatística suspeitava dos seus números e ia controlá-lo. Começou então a “contar como um conta-quilómetros”, e no final desse dia, a diferença entre a sua contagem e a do chefe da estatística foi só de um número: a desconhecida que ele amava e não conseguia reduzir a um número. A minha pequena amada passou, mas nunca na vida será multiplicada e dividida e transformada num nada percentual”. “A minha amada nunca contada!”
A procura do humano
Na desordem de um mundo destruído por uma guerra sem sentido, são os jovens, manipulados ideologicamente desde a infância, as vítimas mais vulneráveis. Solitários, desamparados, são-lhes insuportáveis a indiferença de todos os outros sobreviventes e a incerteza perante o tempo presente.
O jovem da ponte, esperando que a sua amada passe de manhã e à tarde, está numa busca paciente e demorada. É um processo de construção da sua humanidade, um lento caminho de desejo e procura silenciosa, que o vai levar a uma meta.
Na ponte, o jovem encontrou o que procurava: um ser humano (Mensch) na menina que ia e vinha todos os dias trabalhar e também no companheiro que o avisou e a quem ficou grato. Mas “eles” deram-lhe palmadas nos ombros pelo trabalho quase perfeito e transferiram-no para os carros de cavalos, uma verdadeira promoção, já que passavam no máximo vinte e cinco por dia e a horas certas, o que lhe permitiria passear ou olhar longamente para a “sua pequena amada nunca contada” enquanto ela trabalhava. Não sendo uma máquina como “eles”, o jovem sobrevivente ansiava por libertar-se, passear, e reservar um tempo e um lugar para olhar longamente o objeto do seu amor. Este amor, já amadurecido pela diligente busca, é a única salvação para um mundo desumanizado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.