Começo este texto por lembrar que a história da Colonização portuguesa não é uma história bonita de ler à noite às criancinhas, se formos verdadeiros.
Sim, debatemo-nos com mares temidos, cheios de bravura e encontrámos pessoas que já viviam naqueles lugares, nos seus usos e costumes, e não os deixámos lá nas suas heranças históricas nem na emergência das suas próprias culturas, com respeito pela sua terra, e pela sua tradição: nós portugueses, bravos, gigantes abençoados de Poseidon (mitologia grega, se preferirem) ou de Neptuno (mitologia romana, se forem mais adeptos) procurámos sempre aculturar quem colonizámos.
Na verdade, usámos o engenho e a mestria para navegar, mas usámos sobretudo de uma imensa ambição moldada a coragem que outros povos não souberam ter quando decidimos enfrentar o gigantesco desafio do mar e aquilo que podíamos obter do que dali viesse: seria nosso, seria glorioso e seria português. Não haveria mal nenhum em querer conhecer outros lugares, existir noutros mundos, deflagrar novos horizontes, se esse conhecimento não viesse com uma enorme gana de domínio e de supremacia. Na verdade, quando navegávamos heroicamente por mares nunca d´antes navegados, quando atracávamos as nossas naus (e por favor, repare o leitor, que escrevo no plural desde início), já nos achávamos superiores a quem ali vivia, e por isso, em alguns anos, passámos a fazer dinheiro de trocas comerciais onde os objetos não eram já só especiarias e ouro mas eram seres humanos.
É isso: a nossa colonização não foi bonita porque matámos, porque explorámos, porque destruímos, porque devassámos mulheres e meninas, destruímos famílias inteiras em troca de terra e de riqueza. Nós vendemos e comprámos pessoas. A nossa colonização foi em grande parte por isso, uma mão cheia de riqueza e a outra cheia de sangue (atente o leitor, por favor, que continuo a escrever no plural: nós-portugueses, nós-eu).
Séculos depois, o que faríamos a toda essa Memória Histórica gravada na nossa pele, se não tivéssemos conseguido aprender a grande lição da reconciliação?
Daqui há quem assuma que isso é o nosso Passado e por ser o nosso Passado, não pode ser o nosso Presente. Já agora porquê? Ora isso tem várias explicações, sendo a primeira e a mais legitimada de todas: “não tivemos nenhuma responsabilidade nisso porque não fomos nós”. Não somos por isso responsáveis se os nossos antepassados heróicos mandaram pilhar, se violavam, se mostravam os dentes de pessoas e lhes batiam para as submeter com um propósito de venda. Só que fomos.
(Escrevi sempre no plural porque esse passado histórico também é meu e não o posso negar. É o Passado dos grandes feitos de avós de avós meus, da minha linhagem certamente mestiça e aqui assumida.)
Mas vamos a um enorme desafio de empatia: e se tivéssemos sido nós e não eles, durante séculos e séculos de exploração? Séculos de negação de existência humana, sem direito a comida, a água, em tratamento animal onde o acesso à educação não era uma miragem, era uma viagem intergaláctica no século XVI. Séculos depois, o que faríamos a toda essa Memória Histórica gravada na nossa pele, se não tivéssemos conseguido aprender a grande lição da reconciliação?
É que já não são vendidos negros, mas continuam a morrer em virtude da cor da sua pele. Foram com o tempo atirados para guetos nas cidades, não tiveram acesso ao trabalho porque os problemas assentavam no sítio onde viviam, na cor da pele (ex: caso do bairro do Zambujal) ou na sua baixa escolaridade (e já agora, porque teriam baixa escolaridade?)
Mas voltemos ao que a história do nosso país também nos diz e pensemos como foi a nossa descolonização. A descolonização pela integração não existiu. Temos feridas profundas a sarar dos dois lados de guerras que nunca deveriam ter existido. Porque essas terras nunca foram nossas e, o pior de tudo, é que nada disto é Passado.
Pergunto-me se existem estudos de números de antigos combatentes do ultramar com trauma de guerra e o que é que está a ser feito por estes homens.
Pergunto-me se existem núcleos de apoio pensados e estruturados para as legiões de famílias que vieram sem nada do que construíram anos a fio em antigas colónias, e que se sentiram espoliadas dos lugares onde construíram as suas vidas e as suas histórias: vieram com uma mão na frente e outra atrás, a amaldiçoar os negros e os negros a amaldiçoar os brancos.
Nós não somos a África do Sul, mas não será hora de pensar um dia destes em falar disto tudo a sério? Temos em Portugal racismo estrutural e admiti-lo é honestidade intelectual, e talvez seja o começo que precisamos todos: sarar feridas sociais cirurgicamente.
Nunca a expressão “vai para a tua terra” tinha matado. Aconteceu a Bruno Candé.
Foi essa expressão que diz tanto em si própria, que puxou o gatilho que assassinou Bruno Candé (e por favor digam sempre o seu nome: Bruno Candé, não “preto”, não “o preto lá do bairro”.
Aconteceu agora a primeira morte, mas não sem antes, todos nós, social e culturalmente, reconhecermos o peso que esse dedo no gatilho traz.
Quem faz uma viagem de metro em hora de ponta, quem frequenta o comboio da linha de Sintra ou a Carris sabe que discussões comuns que transportes coletivos cheios acarretam, a acontecerem entre um branco e um negro, vão rapidamente escalar ou findar com a célebre frase “vai para a tua terra”. Pior do que a estruturalidade, é a atual normalização do racismo.
Acredito que muita gente sabe que existem senhorios que não aceitam inquilinos negros “porque destroem tudo” (como se os brancos não o fizessem) e que há cabeleireiros que rejeitam senhoras negras.
Minhas senhoras e meus senhores, o racismo mata e temos atualmente pelo menos três líderes políticos negacionistas, e cujas mãos podem estar um dia tão sujas de sangue como a dos avós-dos-avós-dos-avós, aqueles que navegavam lá nos barcos negreiros.
Um destes líderes tem um partido que tem propostas inconstitucionais e que ganha terreno com discursos de ódio e fake news. Fala-se já em alianças políticas à Direita.
Que nas próximas eleições o nome “Bruno Candé” não seja esquecido, a par do nome de cada um destes senhores políticos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.