Há grandes autores — e depois há os “nossos” grandes autores. Mestres que, para lá do lugar mais ou menos definido que têm no cânone, nos marcaram pessoalmente. Não contribuíram “apenas” para a construção de certa visão do mundo que hoje nos define, mas revolucionaram a nossa história. Sem eles, sem as suas obras (sem o nosso encontro com o seu universo em certas especialíssimas circunstâncias), não teríamos apenas outras “referências”, outros “gostos”, outras “inspirações” — seríamos de verdade outras pessoas. Por mais disponíveis que estejamos para epifanias, esse é, claro, um milagre que não acontece a toda a hora. A este espetador de cinema que daqui vos fala, terá acontecido três, quatro, cinco vezes? Com Fellini, descobri que a saudade (o célebre palavrão sem tradução) era, afinal, demonstrável em vinte e quatro imagens por segundo. Com Godard, aprendi que o cinema não era antes nem depois, era aqui e agora. Já com Moretti, digamos que vi a vida. É difícil explicar o que me aconteceu da primeira vez que vi um filme do autor de Palombella Rossa, Bianca, Ecce Bombo. De repente, sentia que a alegria era mesmo (como disse Almada) a coisa mais séria que havia, que o humor podia ser justo e que a arte e a vida se entrelaçavam de um modo profundo e invisível, por fios tão fortes como música. Moretti foi uma influência tal que, mal saí do filme Querido Diário — onde Michele Appicella, o famoso alter-ego morettiano, se passeia por Roma numa vespa sonhando com filmes —, comprei uma vespa em segunda mão e decidi fazer o mesmo pela minha cidade de outras sete colinas.
Foi um fracasso, claro. E um fracasso da pior espécie, ao mesmo tempo patético e inesquecível. A mota era linda como o diabo, mas também velha e pesada e tinha umas mudanças com “truque”. A segunda nem sempre entrava, era preciso insistir. Mas insistir não bastava; além de insistir, era preciso acreditar que a insistência daria resultado… Era esse o tipo de máquina temperamental que eu tinha comprado. Mas, um belo dia, achei que estava pronto. A primeira viagem seria, óbvio, uma aventura cinéfila. Era sábado no mundo, e eu iria de vespa ao King (lembram-se?) ver a obra-prima dessa semana. Logo ao chegar ao Marquês de Pombal, que susto, amigos. A segunda não entrou, e os automóveis passavam a acelerar e a apitar, e eu imaginava (durante um daqueles segundos que duram séculos) caras monstruosas saindo pelas janelas e insultando-me com sussurrados, obscenos, gritos, e via a minha perna esmagada por alguma dessas viaturas cheia de pressa — o que, claro, me fazia perder a confiança necessária para a insistência, falhando de novo o “truque” da segunda. O raio da máquina sentia que eu estava à rasca e não facilitava. Por fora, eu era só um motociclista particularmente tosco; mas, por dentro, aquilo era uma hecatombe, o fim do mundo, toda a minha alma tremia. Não sei como, cheguei vivo ao King. Não me lembro do filme que vi, porque era menos um espetador do que uma pilha de nervos. Mas lembro-me que, no regresso, vim de metro. Deixei a vespa à porta do cinema umas boas semanas — a mota à chuva, a ganhar ferrugem, um monumento ao fim da adolescência ou talvez à cagufa universal —, até que aceitei a derrota e vendi a bela máquina italiana. Parece uma historieta de nada, bem sei, caros leitores, mas acreditem que, para mim, foi o ruir de um sonho. Nessa altura, percebi: nunca seria o Michele Appicella de Lisboa. Não e não, oh não. Em vez de andar por aí de mota, a morrer ou a apanhar sustos de morte, fechar-me-ia numa sala de cinema (ou nalguma sala de estar, quando o mundo fosse mais velho e burguês) a ver e a rever os outros Morettis. Vinte e tal anos mais tarde, graças ao ciclo organizado pela Cinemateca e pela Festa do Cinema Italiano, chego à última longa-metragem assinada pelo grande Nanni.
Sim, este é outro filme capaz de nos mudar a vida. Não no sentido adolescente de sonharmos passear de vespa ao som de Leonard Cohen, mas de nos pôr a pensar no momento da Europa, pensar que a História está sempre a acontecer e que esta hora é a nossa.
Chama-se Santiago, Italia e aparecerá nas salas portuguesas no dia 11 de setembro. É um documentário sobre o golpe de Estado no Chile, em 1973, que derrubou o governo de Salvador Allende e impôs a ditadura de Augusto Pinochet — ou, mais concretamente, sobre a ação dos diplomatas italianos em Santiago que receberam centenas de refugiados políticos na residência do embaixador e garantiram-lhes a saída, mais tarde, para Itália. Não é inocente a ideia de um filme contando esta história no atual momento italiano. Quando, em Roma, há um governo de populistas e fascistas que recusa a entrada a navios de imigrantes com velhos, crianças e grávidas, lembrar que, em tempos, a Itália foi outra coisa é uma bela forma de criticar os podres poderes. E uma forma ainda de inventar um cinema político para os nossos dias. Alguns autores, quando querem criticar o estado de coisas do presente, escolhem a ficção-científica. Moretti vai pelo caminho oposto: a não-ficção e o passado.
Santiago, Italia é um filme muito simples mas nada óbvio. Trata-se, ao mesmo tempo, de um documentário convencional, quase “jornalístico” (contextualização, imagens de arquivo, depoimentos, montagem mais ou menos linear), e de uma afirmação inspirada. Uma afirmação política, sem dúvida — numa das raras vezes em que o realizador entra no filme é para dizer que não está ali de modo imparcial —, mas também uma afirmação cinematográfica. Um cinema que parece dizer: sim, as ideias são filmáveis e, sim, continuam a ser urgentes. Várias das histórias contadas pelos refugiados podiam estar numa ficção de Moretti (penso na fuga com as mulheres mascaradas de freiras ou na hesitação do homem em cima do muro da residência do embaixador, com medo de ser tomado por ladrão) e, em geral, sai-se do filme com a impressão “morettiana” de que certo tom, a que não são estranhos a ironia e o humor, ajuda a falar dos assuntos mais sérios e mais difíceis. Sim, este é outro filme capaz de nos mudar a vida. Não no sentido adolescente de sonharmos passear de vespa ao som de Leonard Cohen, mas de nos pôr a pensar no momento da Europa, pensar que a História está sempre a acontecer e que esta hora é a nossa. Por exemplo: o que é que os candidatos ao Parlamento Europeu dizem sobre a imigração? E já pensámos quem vamos apoiar, como é que vamos votar, e porquê?
Em Palombella Rossa — a obra-prima morettiana onde um jogo de polo aquático se confunde com a crise do comunismo —, um teólogo interpretado pelo realizador Raoul Ruiz tenta resolver “um problema de silêncio” à beira da piscina. Diz que há quatro tipos de silêncio: literal, alegórico, moral e divino, e que é muito difícil, quase impossível, juntar esses quatros silêncios. Mas, quando se consegue, é como fazer “um golo”. Se puderem, caros leitores, saiam para a rua em setembro e vão ver este filme, Santiago, Italia. E depois digam-me, por favor, se Moretti não meteu outra bola na baliza.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.