Na política não pode valer tudo

Enquanto cidadã, tenho obrigação de estar atenta, de não fazer juízos precipitados nem de calar jogos políticos que vejo ocorrer à vista de todos, como se não tivéssemos memória nem soubéssemos entender os resultados que se querem alcançar.

Na vida não vale tudo. Com exceções, claro. Existem assassinos, violadores, gangues da droga, máfias, traficantes… acredito que para determinadas pessoas e organizações possa valer tudo. É um mundo ao qual temos acesso através de filmes e séries de televisão que consumimos de acordo com disponibilidades e gostos. Mas tudo se passa por detrás de um ecrã ou de uma câmara de filmar.  De vez em quando, surge uma reportagem especial ou um trabalho de investigação que mostra ao cidadão comum uma realidade paralela, que até lembra determinado guião ou série. No entanto, para a imensa maioria das pessoas, com fé ou sem fé, na vida não vale tudo. Aliás, é a frase com que terminamos muitas conversas, análises e discussões, estejamos a falar de questões familiares ou profissionais.

Mas a verdade é que, num espaço de tempo relativamente curto, no nosso pequeno país, pacífico, cheio de sol e de belezas naturais, com um povo acolhedor, que até sabe trabalhar bem quando quer, começamos a perceber que esta convicção de que na vida não vale tudo não é bem assim.

O mundo da política é talvez o melhor palco onde atualmente podemos assistir a esta transformação, em que a ficção ganha vida própria.

Quando nos recordamos da ainda recente invasão da Casa Branca, transmitida pelas televisões do mundo inteiro, onde olhámos estupefactos para uma horda de gente que avançava, gritava e destruía tudo à sua volta, empunhando bandeiras e gritando slogans, estávamos muito longe de imaginar que, poucos anos mais tarde, essa gente seria perdoada e considerada heroica.

Quando nos recordamos de encontros entre chefes de Estado, por causa de uma guerra, e assistimos a posturas e linguagens intimidatórias, com o objetivo de vergar e humilhar quem se encontra numa posição de fraqueza, estamos muito longe das atitudes de grandes homens e mulheres que foram tirando o mundo da barbárie, da mediocridade e da desumanidade que séculos de história revelam.

Quando nos recordamos de encontros entre chefes de Estado, por causa de uma guerra, e assistimos a posturas e linguagens intimidatórias, com o objetivo de vergar e humilhar quem se encontra numa posição de fraqueza, estamos muito longe das atitudes de grandes homens e mulheres que foram tirando o mundo da barbárie, da mediocridade e da desumanidade que séculos de história revelam.

Quando nos recordamos da forma como atuais deputados trabalham na nossa Assembleia da República, é preciso lembrar que foi ali que se sentaram grandes estadistas, foi ali que se forjou a liberdade e a democracia, foi ali que se realizaram discursos históricos que nos fazem sentir orgulho na nação que somos. Ao contrário da vergonha que se sente ao ver e ouvir uma nova forma de fazer política que vai fazendo o seu caminho.

Esta forma começou devagar, como tudo deve começar. Hoje uma subida no tom de voz, uma insinuação, um sorriso cínico. Amanhã, um dedo em riste, um escândalo, uma acusação sem prova. Hoje um discurso inflamado e apelativo à ordem, à moral, aos bons costumes. Amanhã a exploração emotiva dos fracos e dos pobres e a força da teoria do bem. E vai-se caminhando, primeiro discretamente, mais tarde descaradamente, como se a mentira desse força e a calúnia fosse uma urgência. Na vida não vale tudo. Mas vamos percebendo que na política é mesmo capaz de valer tudo.

Chegados a este ponto, é sempre importante lembrar que a liberdade é o bem mais precioso que podemos ter, apresentar e defender. Sem liberdade, somos gente sem destino, ou melhor, gente que vive o destino de alguém. Sem liberdade somos gente sem movimento, porque movimentados por outros. Sem liberdade, somos gente presa dentro da cabeça e do coração. Podemos pensar e até amar, mas de forma escondida. E quando falamos da liberdade daqueles que só se sentam em determinadas cadeiras porque alguém lhes permitiu que tal acontecesse, estamos à partida de acordo que a liberdade também lhes assiste.

No entanto, não podemos ficar indiferentes ao que fazem, ao que dizem, à forma como fazem e como dizem. Porque nos estão a representar e a defender. É aborrecido? Sim, pode ser. Provoca discussões, ou até mesmo cortes de relação? Pode acontecer. Obriga-nos a pensar, a comparar, a ler, a ter opinião própria? Obriga certamente.

Mas não temos outra hipótese. Se queremos viver com liberdade, com dignidade, com direitos e deveres. Enquanto cidadã, tenho a obrigação de levantar a voz contra a forma degradante como estamos a permitir que alguns políticos se tratem uns aos outros. Como se a vida política fosse um circo, um espetáculo que se monta e desmonta.

Enquanto cidadã, tenho a obrigação de estar atenta, de não fazer juízos precipitados nem de calar os jogos políticos que vejo acontecer à vista de todos, como se não tivéssemos memória, nem soubéssemos entender os resultados que se querem alcançar.

Enquanto cidadã, tenho a obrigação de fazer um escrutínio quase diário à comunicação social. Dizemos, e bem, que a comunicação social deve escrutinar a vida pública e política, no sentido de denunciar o que está errado, o que é mau e faz mal à sociedade. Mas neste tempo, em que tantas vezes os comentadores são jornalistas e os jornalistas comentadores, cabe-nos a nós, consumidores de informação, separar o trigo do joio.

Vamos entrar em período eleitoral e já somos muitos os que tememos que esta recente realidade ganhe asas, ocupe os dias e as noites e nos incomode ao ponto de nos tornar indiferentes. Precisamos de tornar claro para todos aqueles que se querem sentar nas cadeiras da Assembleia de República (e no conforto que as mesmas lhes dão) que não vale tudo. Porque legislar e governar pode e deve ser uma evidência de dignidade, de consenso que visa o bem maior, de diálogo que engrandece quem fala e quem escuta. Porque legislar e governar pode e deve ser possível sem ataques pessoais, sem afrontas, sem mentiras e insinuações.

Para quem tem fé, a esperança é uma virtude teologal, isto é, emana de Deus, leva-nos a Deus e traz a Sua presença para as nossas vidas. O Papa Francisco pede-nos que sejamos Peregrinos de Esperança e construtores da Paz. E só a fé me ajuda a ter esperança de que vamos conseguir ter um tempo eleitoral em que os políticos falem do que querem fazer a favor de Portugal e os portugueses saibam distinguir o trigo do joio.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.