Mulheres: uma questão de perspetiva?

Na Igreja, como na sociedade, o papel da mulher tende a ser confundido com um papel menor. O de servir, cuidar, amar, orar e ao mesmo tempo ser ativa, ser inteira nas suas várias dimensões que passam por ser mãe, trabalhar, ser esposa, amiga, e ser, apenas. Sem palcos, sem luzes, sem protagonismo. Será realmente assim?

A mulher e a sociedade

Numa sociedade de tradição marcadamente machista – como é a portuguesa – e em estonteante evolução, o papel da mulher tem estado em destaque e discussão precisamente porque as expectativas de homens e mulheres (e também da envolvente) estão muitas vezes desalinhadas.

A título de exemplo: há menos de 50 anos, as mulheres portuguesas precisavam de autorização do pai ou do marido para poderem viajar para fora do país; o seu trabalho era ficar em casa a cuidar dos filhos e da casa e as suas opções de vida passavam, na grande maioria dos casos, por casar e ter filhos. Ponto. Um papel visto como secundário, uma vez que o sustento, a contribuição para a economia e a vida pública – o que tinha verdadeiro relevo social – era assegurado pelos homens.

Hoje, a maior parte das mulheres nascidas a partir da década de 1970 tem um emprego, ganhou os direitos que lhe eram negados durante o Estado Novo e a independência com que antes nunca ousara sequer sonhar. Para além desse novo papel social, a mulher continua a viver a maternidade e a assegurar a maior parte do chamado “trabalho não pago” – 4h23 contra 2h38 dos homens – ao mesmo tempo que, quando se fala de trabalho pago, recebe menos do que os homens em iguais funções [1]. Afinal, só passaram 44 anos desde o 25 de Abril e estas coisas demoram o seu tempo. É também das mulheres o maior grupo social a dizer-se deprimido: 66% das mulheres portuguesas, para sermos precisos, considera-se deprimida, segundo a OCDE [2]. Outro estudo, realizado recentemente pelo serviço nacional de saúde britânico, revela por seu lado que as mulheres casadas são quem tem mais problemas de saúde mental – distúrbios de sono, ansiedade, auto-confiança, depressão [3]. Os especialistas acreditam que este facto está relacionado com o facto de, precisamente, ser ainda sobre as mulheres que recai a maior parte do fardo do trabalho doméstico.

E podia continuar a enumerar desigualdades, embora me pareça mais pertinente fazer uma pergunta: significa tudo isto que o papel da mulher é menor na sociedade? Ou, pelo contrário, significa que a mulher, apesar de ter grande parte das probabilidades – laborais, políticas, sociais – contra si, leva a cabo uma empreitada enorme na prossecução do que são os seus objetivos e concretizações pessoais, o que projeta imediatamente para um papel muito mais relevante do que aquele que muitos lhe querem atribuir?

E ainda uma outra: onde estamos a falhar, enquanto sociedade, enquanto cristãos, para que estes números sejam tão assustadores? Quando conseguiremos mudar nas nossas cabeças as ideias de que as mulheres só existem para servir, e que esse serviço é menor?

 

A mulher e a Igreja

Vieram-me estas ideias à mente quando refletia, há uns tempos, sobre o papel da mulher na Igreja – outra dimensão onde a desigualdade é muitas vezes abordada.

Muito se tem debatido o assunto: A mulher tem um papel maior ou menor que os homens? Que importância assume numa instituição tão masculina? De que forma é o seu serviço visto por leigos e religiosos?  A mulher deve ou não poder receber o sacramento da ordem? (Francisco já veio sublinhar que permanece a deliberação de São João Paulo II, de que não deve poder).

Mas durante uma das celebrações deste Natal último, assaltou-me ainda outra questão: que seria feito da Igreja sem as mulheres?

Primeiro ponto, que não raras vezes esquecemos: a Igreja é mulher. Esposa de Cristo, é nela, figura feminina, que repousam esperanças, anseios e dúvidas. Ela, mulher, reveste-se, portanto, de uma primeira importância incontornável. “Não existe Igreja sem esta dimensão feminina, porque ela mesma é feminina”, defendia Francisco há uns meses em conversa com jornalistas.

Depois temos a dimensão mariana da Igreja – também ela tantas vezes esquecida porque relegada apenas para o plano de ‘vaso’ de Jesus Cristo. Através de quem chegamos ao Filho de Deus? Quem o gerou, carregou, fez nascer, crescer e cuidou até à cruz? Quem esteve ao seu lado nos momentos antes e depois da morte? Que outra figura O chorou e d’Ele cuidou mesmo no sepulcro? Maria e Maria Madalena são o espelho de uma dimensão feminina que é impossível igualar por homens, porque biologicamente e emocionalmente diferentes.

Quando a mulher pecadora lavou os pés a Jesus com as suas lágrimas, perfumando-os em seguida com alabastro, todos a condenaram. Jesus, porém, perdoou-lhe os pecados porque ela “amou muito”. Esta dimensão do Amor que na mulher pecadora chega sem aviso, é também ela difícil de igualar: o amor que cuida, que protege, que se entrega; o amor que perfuma, que não procura recompensa alguma. É este Amor que é vivido pelas mulheres que são Igreja, que são da Igreja, e também por aquelas que “pura e simplesmente” dão vida, dão a vida. Sejam as religiosas em clausura ou em serviço permanente junto dos pobres, dos padres, das comunidades. Sejam as catequistas, as coralistas, as leitoras, as ministras de comunhão, as leigas consagradas, as responsáveis pelas casas paroquiais, pelos seminários, as que coordenam as equipas de jovens ou de casais. São elas, muitas vezes, as que mais se aproximam de Jesus mesmo que não possam receber o sacramento da ordem. Ou não foi Ele quem disse “Eu vim para servir”, quando lhe perguntaram quem seria o maior, o primeiro de entre eles?

Repito a ideia inicial: na Igreja, como na sociedade, o papel da mulher tende a ser confundido com um papel menor. O de servir, cuidar, amar, orar e ao mesmo tempo ser ativa, ser inteira nas suas várias dimensões que passam por ser mãe, trabalhar, ser esposa, amiga, e ser, apenas. Sem palcos, sem luzes, sem protagonismo. É Jesus quem destrói essa ideia de que o serviço é algo menor. É Ele, há tantos séculos, quem faz luz sobre tão tensa discussão.

Olhemos para a mulher à luz das palavras de Jesus e talvez tenhamos uma surpresa quanto à importância de cada um no mundo.

“Quem quiser ser grande entre vós, faça-se servo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos” (Mc 10,43-45)

[1] Igualdade de género em Portugal

[2] Health at a Glance 2017

[3] Women more unhappy than men until they reach mid-80s

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.