Cresci a ouvir a Parábola dos Talentos, convicta de que, efetivamente, temos nesta vida a grandiosa oportunidade de pôr os nossos talentos a render, sejam eles quais forem. Estudei e experimentei o que pude e como pude para abraçar os desafios profissionais onde acredito que os meus “talentos” (maiores ou menores, não importa, cada um faz o que pode com aquilo que tem, diz-nos também a parábola) podem fazer a diferença. E porque a maternidade também fazia parte dos meus planos – crendo eu ser também ela um dos meus talentos –acabei mãe de quatro filhos que têm, entre outros talentos, o de preencher a minha vida com inesperados contratempos e permanentes desafios. Uma maravilhosa aventura diária, da qual não nos podemos despedir, pedir um ano sabático ou transferência para outras funções. As próprias férias são difíceis de tirar – um fim-de-semana ou outro, passados a ligar aos avós a saber se está tudo bem. E o que exige de nós, em termos de conhecimentos, orçamentação, capacidade de liderança, gestão de conflitos e criatividade? Com “profissão” tão exigente, como ser também um profissional exemplar naquela que é reconhecida (a única) como a nossa profissão? Como não falhar em nenhuma das frentes? É humanamente possível? Desejável? Será mesmo preciso fazer opções? Com que consequências?
Este é o dilema em que vivem muitas mulheres que conheço, que adoram ser mães, mas não querem deixar de pôr os seus talentos a render, na área para a qual estudaram e investiram anos e anos das suas vidas. Tempos houve em que as mulheres não estudavam ou eram impedidas de prosseguir os estudos – como ainda assim é, infelizmente, em tantos países – e a elas cabia toda a gestão do lar e dos filhos. Às vezes com um prazeroso sentido de missão, outras abdicando dos seus sonhos e talentos com uma enorme frustração.
A verdade é que muita coisa mudou, em meio século de História, e há duas décadas que entram mais raparigas do que rapazes nas universidades. Como apontam diversos estudos, os seus resultados até são, regra geral, melhores, por um conjunto de qualidades (atenção, empenho, organização), que favorecem a aprendizagem. A desigualdade salarial continua a ser uma realidade – em 2015 a diferença salarial média entre homens e mulheres ainda era de 20% – mas há cada vez mais mulheres a chegar a cargos de direção. Continua a perguntar-se às mulheres, numa entrevista de emprego, se pretendem ter filhos e a penalizar muitas delas por responderem afirmativamente, mas também há cada vez mais mulheres a partilhar a licença de parentalidade com os homens, porque estes fazem questão de estar cada vez mais presentes na vida e educação dos filhos.
As mulheres continuam a acumular a profissão com o trabalho doméstico e o cuidar dos filhos – segundo dados do Fórum Económico Mundial, as mulheres portuguesas trabalham mais 90 minutos por dia, 22,5 dias por ano do que os homens – mas há cada vez mais homens a partilharem todo o tipo de tarefas com as mulheres. Esse mesmo relatório avança que só daqui a 170 anos é que deixará de haver desigualdade de género ao nível salarial e de oportunidades… mas há esperança. É só preciso, no entanto, que essa igualdade não se consiga à custa de taxas de natalidade insuficientes, ou de um desinvestimento (por falta de tempo) na educação dos filhos. Até porque, a meu ver, a educação é uma excelente via, talvez a melhor, para resolver esta questão. Os meus filhos rapazes ouvem-me dizer diariamente que a casa é de todos e cabe a todos assumir responsabilidades na gestão do lar, sem “escravizar” ninguém. E a minha filha é tão livre como os irmãos de sonhar e de decidir de que forma vai investir os seus talentos (e quer ser “cientista do espaço”! Porque não?).
Um dia, contaram-me a história de um ovo de gaivota que foi parar a uma capoeira. Quando a pequena gaivota nasceu, começou a imitar os irmãos pintos, mas ao contrário deles, não se sentia feliz. Até que, certo dia, olhou para o céu e viu as gaivotas a voar. Ficou maravilhada, mas as galinhas disseram-lhe que ela jamais poderia voar, porque as galinhas não voavam. E eram felizes assim.
Contei a história aos meus filhos, na altura ainda pequenos, e perguntei-lhes se eles se sentiam galinhas ou gaivotas, na sua vida. Ao que o meu filho velho, desde cedo perspicaz, respondeu prontamente: “Não sei. Mas se nos estás a contar essa história, é porque ÉS uma gaivota. Quando nos deitas na cama sais pela janela a voar…” Deixei-me rir, e já que a conversa seguira esse rumo, não resisti a colocar-lhe outra pergunta: “E tu achas que os filhos precisam mais de uma mãe galinha ou de uma mãe gaivota?”. “Depende”, respondeu-me. “Depende se o filho é um pinto ou uma gaivota-bebé…”
É difícil saber ao certo qual o melhor exemplo a dar aos nossos filhos, nesta matéria: se eles serão mais felizes se tiverem uma mãe ou um pai sempre presentes, se tiverem pais que trabalham muito para lhes dar o melhor, ou pais que são exemplo na forma como perseguem os seus sonhos, como viram as suas vidas do avesso por aquilo em que acreditam, ou lutam para transformar o mundo. Os pais não são todos iguais. Os filhos também não. O importante, creio eu, é mesmo cada um de nós conhecer os seus talentos e descobrir o que fazer com eles, ouvir dentro de si aquilo que é mais forte, a cada momento, e procurar um equilíbrio pessoal, familiar e profissional que seja fonte de bem-estar e permita construir relações saudáveis, de aprendizagem e respeito mútuo.
Para isso é preciso que a sociedade também mude, que os horários se agilizem, que surjam mais apoios à família, e que a maternidade deixe de ser encarada como um “entrave” à realização profissional das mulheres, mas antes se torne numa mais-valia do seu currículo, por tudo o que ensina e todas as capacidades que desenvolve. É preciso facilitar e apoiar o regresso ao trabalho às mulheres que o desejem, depois de vários meses ou anos dedicados aos filhos, que deveriam ser contabilizados como anos de serviço exigentes. E é urgente que se valorize, também financeiramente, a maternidade/paternidade, para quem a exerce a meio tempo ou tempo inteiro, para que esta não obrigue à dependência financeira de quem assume essas funções, ou à degradação da qualidade de vida da família.
Termino com um sonho que tive, há uns anos, numa altura em que me sentia um pouco perdida e questionava a minha “missão” nesta vida. Foi um sonho em poema, sussurrado numa voz suave, enquanto eu estava num cais, prestes a partir. Na água, um pequeno barco, com o barqueiro que me aguardava para me levar para uma importante missão. Em terra, de roda de mim, estavam os meus filhos, suplicando-me para que não os deixasse. “A vida sempre nos leva onde temos de ir”, escreveu Saramago nas “Memórias de um Elefante”, e foram essas palavras as que vieram ao meu encontro, no meu sonho. “E a mãe tem de partir…”, dizia aos meus filhos, com a certeza de que estava a fazer o que era necessário.
Afastei-me um pouco para ir buscar algo para a viagem e, quando regressei, percebi que o barco tinha partido sem mim. “O que é que fizeram? O que é que disseram?!”, perguntei aos meus filhos. “A mãe precisava mesmo de partir…”
Subi então ao cimo de uma montanha para pensar. Perdera aquela que eu julgava ser a missão da minha vida… Foi então que o vento me pediu que serenasse. O barco não se fora embora de vez. “O barqueiro ouviu os teus filhos e foi buscar um barco maior. Prepara-os o melhor que puderes, porque um dia embarcarão juntos nessa missão…”
E eu serenei. Não há propriamente missões incompatíveis. Há apenas tempos, escolhas, ajustes, e os nossos filhos, nossos grandes mestres de tantas formas, podem afinal ser nossos grandes aliados para tudo aquilo que fizer sentido nas nossas vidas. Podem multiplicar os nossos talentos. E até ajudar-nos a pô-los a render de formas que, se calhar, nem sabíamos possíveis… Com serenidade. Liberdade. E sem perder a capacidade de sonhar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.