Em 1864 o papa Pio IX publicou o documento Syllabus Errorum (Elenco dos Erros) como parte da encíclica Quanta Curam (Com Quanto Cuidado). O Syllabus é uma lista do que o papa considerava serem os erros da sua época: o racionalismo, o liberalismo, o socialismo, etc. Estes são enunciados em 80 afirmações intercaladas com a indicação do documento do magistério de Pio IX em que se encontrava a respetiva refutação.
O Syllabus teve um grande impacto dentro e fora da instituição católica: agitou a imprensa, atiçou o anticlericalismo, reforçou a divisão entre católicos liberais e intransigentes, suscitou esclarecimentos da hierarquia. Explicada esta ideia, pedimos ao leitor que a reserve, como se diz em culinária. Damos, assim, um salto cronológico.
Nos anos 30, a Suprema Congregação do Santo Ofício (nome anterior da Congregação para a Doutrina da Fé) constituiu uma comissão para examinar as proposições racistas expressas em várias publicações nazis, nomeadamente Mein Kampf, (A Minha Luta, 1925) de Adolf Hitler e Der Mythus des Zwanzigsten Jahrhunderts (O Mito do Século XX, 1930), de Alfred Rosenberg, obra que a mesma congregação da Cúria Romana integrou em 1934 no Índex.
Esta comissão era composta por vários padres jesuítas: Franz Hürth, Johannes Rabeneck, G. Batt e Louis Chagnon. O Mestre-Geral da Ordem dos Pregadores, Martin Gillet, e o futuro cardeal Ernestro Ruffini, estavam também implicados naquele grupo de trabalho. Este visava apresentar estudos sobre o que consideravam ser perigos ideológicos: o nacionalismo, o racismo e o estado totalitário.
Não sendo um objeto específico, o comunismo é aludido nesses estudos. Também o fascismo estava sob vigilância do Santo Ofício nestes anos, tendo a mesma comissão analisado a obra de Mussolini La Dottrina del Faccismo (A Doutrina do Fascismo, 1932).
Ora, o sub-secretário de Estado da Santa Sé, monsenhor Domenico Tardini, propôs uma condenação solene das «heresias materialistas» do século XX – o nacional socialismo alemão, o comunismo soviético e possivelmente o fascismo italiano – sob a forma de um segundo Syllabus (explicado no primeiro parágrafo). Contudo, este projeto foi adiado sem termo por uma decisão tomada pelos cardeais que compunham o Santo Ofício e confirmada por Pio XI. Entre os que desaconselharam o plano de um segundo Syllabus encontrava-se Eugenio Pacelli, então chefe da diplomacia do Vaticano e futuro papa Pio XII.
Apesar de nunca nomear Hitler nem o seu partido, Pio XI condena a ideologia da raça e do sangue, o intento de se construir uma cristandade ariana ou o paganismo da adoração de uma nação e de um Estado.
A decisão tomada justificava-se pelos riscos sérios que comportaria a condenação explícita e solene das doutrinas de Hitler, sendo ele o chefe do Estado alemão, bem assim a criação de má vizinhança pela censura aos fundamentos fascistas. Também é certo que, nessa altura, Mussolini ainda não tinha defendido publicamente ideias racistas como viria a acontecer no ano seguinte e, bem assim, Pio XI já havia contestado o fascismo na encíclica Non Abbiamo Bisogno (Não Temos Necessidade, 1931).
O programa de publicação de uma espécie de versão atualizada do Syllabus, defendido por Tartini com o objetivo de conferir musculatura, formalidade e impacto à posição condenatória do papa ao racismo, ao nacionalismo e ao totalitarismo, foi substituído pelo plano de publicação de duas encíclicas – a primeira dedicada ao nacional socialismo, a segunda ao comunismo ateu – às quais se juntou uma terceira mais breve sobre o caso mexicano.
No espaço de catorze dias, entre os domingos de Ramos e de Páscoa do ano de 1937, Pio XI publicou nada menos que três encíclicas. Mit Brennender Sorge (Com Ardente Ansiedade), saiu a 14 de março, Divinis Redemptoris (De um Redentor Divino) no dia 19, e Firmissimam Constantiam (Firmíssima Constância) no dia 28. Nos dois séculos anteriores existiram, no máximo, duas encíclicas emanadas no mesmo mês ou até no mesmo dia, exceto Leão XIII que em dezembro de 1888 publicou também três. Porém, eram quase sempre textos curtos, de temas repetidos e cirúrgicos.
Mit Brennender Sorge criticou o ataque a escolas e a associações católicas na Alemanha, a esterilização para fins eugénicos, o encorajamento de alguns crentes à apostasia, a difamação e a detenção em campos de concentração de padres e religiosos críticos do regime. Mais de metade da encíclica é dedicada a demolir os princípios do nazismo.
Apesar de nunca nomear Hitler nem o seu partido, Pio XI condena a ideologia da raça e do sangue, o intento de se construir uma cristandade ariana ou o paganismo da adoração de uma nação e de um Estado. Embora a Gestapo tenha reprimido a circulação da encíclica, ela foi lida nos púlpitos das igrejas católicas germânicas e a Santa Sé investiu na sua circulação mundial, nomeadamente nos EUA.
O comunismo era um velho inimigo para a instituição católica, sobre o qual uma extensa literatura pontifícia foi sendo produzida. Por isso, a Divinis Redemptoris denota porventura uma maior estruturação argumentativa; apresenta também a contraproposta de um modelo católico de sociedade e economia. Por seu turno, o nazismo era recente, ainda confinado a um território circunscrito e seria incauto fechar todas as portas diplomáticas ao Reich.
Tendo o comunismo aspirações universais e uma larga difusão internacional, a sua rejeição pela Igreja seria de natureza concorrencial, ao passo que a rejeição ao nazismo era de outra índole – talvez a da repugnância – por dar uma máscara de identidade cristã a princípios intoleráveis. Não era uma questão de ateísmo, como no comunismo, mas de aproveitamento perverso do legado doutrinal e teológico cristão.
Em 1938 deu-se um conflito entre Pio XI e Mussolini, no qual o papa reprovou as leis racistas (anti-semitas) instituídas pelo Duce. Entre vários episódios desse processo de rutura, destacamos a nomeação de três jesuítas para prepararem esboços de uma encíclica condenatória do racismo biológico. Com a morte do papa no início do ano seguinte, ela ficaria por publicar.
Nota: À exceção do primeiro, segundo e penúltimo parágrafos, este texto foi baseado no livro The Papacy in the Age of Totalitarianism 1914-1958, de John Pollard (Oxford University Press, 2014).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.