No princípio era o verbo e o verbo encarnou num contexto em que as expetativas messiânicas judaicas rebentavam por toda a parte. O período de quase um século e meio entre a anexação da Judeia por Pompeu em 63 a.C. e a destruição da cidade de Jerusalém no ano 70 d.C. pelo futuro imperador romano Tito, foi assim marcado pelo aumento da pressão da iminência da perca total e definitiva da independência para o império.
Pode considerar-se que a apocalíptica é em parte a apropriação e a reconfiguração espiritual dessa pressão galopante de cariz político. O messianismo corresponde a uma utopia de tipo nacionalista que coincide com um saudosismo idealizador da unidade, prosperidade, liberdade e mesmo da força militar do reinado de David. Este simboliza a fugaz (pois começara apenas com Saul e só continuaria com Salomão) monarquia que reunira todas as tribos, proporcionando a unificação dos hebreus numa só unidade política. Unidade que se perdera para sempre. David era a figura do passado que baseava a ânsia por uma personalidade futura, como Zorobabel (na profecia mais tardia) ou Bar Koshba já no início do século II.
Esta utopia davídica era a base do messianismo que teve em grande medida na apocalíptica a sua expressividade urgente e onírica. Foi este quadro messiânico e apocalítico que essencialmente constituiu o substrato do imaginário dos primeiros cristãos. Foi ele o caldo em que ocorreu a interpretação com que Jesus foi percecionado e construído, sendo que «o imaginário não é apenas a representação simbólica do que ocorre, mas também um lugar de elaboração de insatisfações, desejos e busca de comunicação com os outros» (Néstor Canclini).
Os judeus olhavam para Jesus com o olhar emoldurado por estas categorias mentais que correspondiam a requisitos e a medidas bastante apertadas nos castings realizados aos vários candidatos a messias que desfilavam naquele cenário socio-religioso fervilhante. A verdadeira questão é porque é que Jesus encheu (e entornou) essas medidas. Porque é que esse preenchimento ocorreu precisamente por parte de alguém que lidou com essas expetativas messiânicas de um modo totalmente disruptivo.
A consciência do seu universalismo é, por tudo isto, o único bilhete que permite entrar e assistir ao espetáculo silencioso da sua identidade e da sua vida.
Se é verdade que no judaísmo predominava um nacionalismo pungente, é igualmente certo que já se tinham ensaiado intuições universalistas. Apesar de minoritárias no panorama teológico geral do Judaísmo da época de Jesus, é nelas que Jesus se vai inscrever. Nas escrituras judaicas, esse universalismo está especialmente patente no irónico livro de Jonas ou nos livros de Isaías.
É em alguns textos deste profeta que encontramos de modo particularmente eloquente esta reviravolta na autorrepresentação do povo como eleito: essa eleição não exprime uma preferência com um fim em si própria por parte de Deus mas é de natureza instrumental, pelo que o povo é eleito para mediar o conhecimento e a experiência do Deus único de modo a que alcance todos os povos (Armindo Vaz). Do corpo textual de Isaías destacam-se duas estruturas metafóricas em que este universalismo se exprime.
A primeira é a imagem do banquete universal: «No monte Sião, o Senhor do universo prepara para todos os povos um banquete de carnes gordas, acompanhadas de vinhos velhos, carnes gordas e saborosas, vinhos velhos e bem tratados» (Isaías 25, 6). Será possivelmente com base nela que Lucas no seu Evangelho retrata Jesus como frequentador de refeições, porque em Jesus de Nazaré estas expressam não só o momento escatológico futuro mas o «hoje» – palavra tão frequente no mesmo evangelho.
A segunda «estrutura metafórica» corresponde ao misterioso protagonista dos cânticos do servo que pontuam o segundo e o terceiro livros de Isaías. Neles é plasmada a ideia que aprofunda aquela da eleição: esta, mais do que instrumental, é expiatória. Pelo seu sofrimento, aquele servo que seria provavelmente a representação simbólica do povo judeu, expia os erros desse povo e de todos os povos e é por essa via de uma fragilidade redentora e de uma autoridade não autoritarista, que o judaísmo obtém a saída do impasse das pesadas expetativas de cariz triunfalista em relação a si próprio.
É nesta sensibilidade teológica inaudita, e que apenas como um vislumbre ocorre no Antigo Testamento, que Jesus se vai posicionar. A consciência do seu universalismo é, por tudo isto, o único bilhete que permite entrar e assistir ao espetáculo silencioso da sua identidade e da sua vida. Por conseguinte, que tenhamos em conta que a espera que dele fazemos neste Advento deverá ser feita «por nós e por todos» porque foi, é e será «por nós e por todos» que Ele veio, vem e virá. Ele deseja todos. Que seja em nome de todos que o desejemos também.
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Néstor García Canclini – Imaginários culturais da cidade: conhecimento / espetáculo / desconhecimento. Em Teixeira Coelho (org.) – A cultura pela cidade. São Paulo: Iluminuras; Itaú Cultural, 2008, p. 21.
Armindo dos Santos Vaz – Eleição divina e perceção humana de ser amado. Lusitania Sacra 37 (Janeiro-Junho 2018) 39-50
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.