A principal lição que retiro deste ano é a dupla convicção de que a polarização é mais aparente do que real, mas que a polarização aparente é real.
Estranhamente, a palavra “polarização” ainda não foi condecorada como “palavra do ano” por nenhum dicionário anglo-saxónico. Ou o reconhecimento está por semanas, ou não compreendo os critérios dos dicionários digitais. Talvez estejam enjoados da palavra, à semelhança do que me acontece com o “populismo” ou o “politicamente correto”. Expressões que servem para tudo, não servem para nada. E, no entanto, quando decido escrever sobre 2022 e aquilo que aprendi, concentro-me na polarização. Peço desculpa aos lexicógrafos.
A polarização é mais aparente do que real
A convicção de que vivemos tempos polarizados parece-me incontestável. Basta pensar nas eleições presidenciais francesas e brasileiras deste ano. Estamos divididos, tanto nas ideias como na sociedade. Mas será que a nossa convicção sobre o grau de polarização existente é superior ao grau real que existe? Este ano convenceu-me que sim.
Mas será que a nossa convicção sobre o grau de polarização existente é superior ao grau real que existe? Este ano convenceu-me que sim.
Não me refiro à polarização no meio académico, nem no meio ativista. Penso sobretudo na população em geral, que participa civicamente e elege governos, que conversa sobre política e reflete sobre o bem e a justiça. Nesse universo, que representa a vastíssima maioria dos cidadãos, a polarização é mais aparente do que real.
Este ano, finalmente restabelecidos os fóruns físicos que a pandemia suspendeu, tive oportunidade de regressar a um maior convívio com quem vota de forma diferente, para rapidamente verificar que votar diferente não é sinónimo de pensar diametralmente diferente. Diante das questões fraturantes, aquelas onde se abrem as maiores brechas, aquilo que encontrei do outro lado, vezes e vezes sem conta, foi uma pessoa muito parecida comigo. Com as mesmas dúvidas, sensibilidades e convicções, divergindo apenas na conclusão, fruto do peso relativo que merecia cada argumento, do contexto social ou familiar de cada um, ou ainda de diferenças de personalidade. Aconteceu também que a divergência chegasse aos fundamentos antropológicos e filosóficos da discussão. Mas mesmo aí, a motivação e horizonte da justiça era comum e as preocupações partilhadas. A polarização de ideias – que considero necessária e útil (reler texto do Ponto SJ do dia 14 de outubro 2021)– não resultava num tribalismo afónico, mas num civilizado encontro com o outro.
A aparência de polarização gera aparência real
Para gerarmos polarização danosa, daquela que destrói o capital social de uma comunidade, pouco importa se nos fundamos na realidade ou na aparência. Existe hoje a convicção de que existe muita polarização, porque “eles” já não são como eram, radicalizaram-se, metamorfosearam-se, traíram a sua tradição política. “Eles”, não nós, que nos consideramos imóveis a defender os princípios de sempre, ou, no máximo, tornámo-nos mais vocais nalguns temas. Mas nós não mudamos por mudar; mudamos para nos defender do radicalismo alheio e dos seus avanços. E neste tango dialético, a polarização vai crescendo e o fosso aumentando. “Eles é que começaram.” Começaram o quê? Pouco importa, a profecia realiza-se a si própria. A aparência de polarização gera polarização real. Construímos defesas que se hospedam na nossa cabeça. O facto posterior de “eles” nunca terem dito ou defendendo isso, até por “eles” não existirem, não tem efeitos. A perceção está criada, o dano está feito, pouco importa quem ou o que a gerou.
O caminho a seguir passa por reabilitamos o nosso “capital social”, proximidade e confiança. Precisamos de lugares de encontro, abertos a todos e onde cada um possa participar e escutar.
O desfasamento entre a realidade e a aparência funciona como motor da realidade. Um fenómeno fictício não deixa de produzir efeitos reais, com um potencial danoso imprevisível. O caminho a seguir passa por reabilitarmos o nosso “capital social”, proximidade e confiança. Precisamos de lugares de encontro, abertos a todos e onde cada um possa participar e escutar. Até aqueles que consideram que, ao contrário de mim, a polarização é profunda e irremediável. Talvez o caminho deva começar precisamente por aí.
PS: Sobre como somos (e continuamos a ser) mais parecidos uns dos outros do que pensamos, independentemente das nossas cores políticas, religiosas ou ideológicas, aproveito para referir o livro “Política a 45 Graus” do José Maria Pimentel. A primeira parte da obra aborda as diferentes correntes ideológicas através das motivações e preocupações de diferentes figuras políticas portuguesas. Uma leitura que se revela como uma experiência de humildade e proximidade. Aconselho.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.