Nos Estados Unidos, a pandemia da COVID-19 alastrou com força, acabando por ser o país com o maior número de casos e de mortes por ela causados a nível mundial. Parece uma contradição que a economia líder mundial, que tem o maior número de clínicas especializadas na resolução de qualquer problema físico, e que em 2019 foi o país com as maiores despesas de saúde a nível mundial, esteja a atravessar uma crise de saúde pública, com sérias consequências económicas, sociais e políticas. A estas dificuldades juntou-se o assassinato de George Floyd na cidade de Minneapolis, que acabou por funcionar como gatilho da maior explosão social dos últimos 50 anos.
Ao mesmo tempo, ao longo das últimas semanas, circularam em toda a imprensa mundial imagens das visitas que Donald Trump fez à Igreja Episcopal de São João Baptista e ao Santuário de São João Paulo II em Washington, DC, no início do mês.
Na sequência destas visitas, Trump assinou uma ordem executiva relativa à liberdade religiosa, a qual afirma que é “a primeira liberdade da América”, e que é “um dom de Deus para cada pessoa”, e que o seu exercício é “um direito fundamental para o florescimento da sociedade”. Por conseguinte, a partir deste decreto, os Estados Unidos comprometem-se a incorporar o direito à liberdade religiosa como parte da sua política internacional, comprometendo-se tanto a nível diplomático como económico. Estes três factos não passaram despercebidos e foram vistos por alguns como uma utilização política da religião e, consequentemente, como uma forma de obter apoio entre os eleitores que se identificam com uma denominação religiosa.
Alexis Tocqueville, no seu célebre livro Da Democracia na América (1835), afirma que, nos EUA, a religião ajuda a reforçar as práticas democráticas na medida em que mantém unidos o ideal democrático de igualdade e o impulso para a liberdade. Uma das particularidades do modelo americano é que, sendo um país profundamente religioso, nunca na sua história teve uma religião oficial. A partir desta ideia, a imaginação coletiva do povo acabaria por conceber os Estados Unidos como a Terra Prometida, cuja missão seria a de estender a liberdade e a igualdade a todas as nações da Terra, como expressão do seu destino manifesto (manifest destiny). Exemplos desta ideia são a participação em ambas as guerras mundiais, a guerra fria e, uma vez terminadas as guerras, a luta contra o terrorismo islâmico. Em todos estes casos, para além da dimensão política e militar, esteve sempre presente uma forte motivação religiosa.
Esta forma de entender a religião na vida civil permitiu, durante a presidência do republicano Ronald Reagan (1981-1989), a emergência do fundamentalismo evangélico como protagonista político. Embora os evangélicos existam desde o século XIX, com fortes contribuições na luta contra a escravatura e na defesa dos direitos humanos nas prisões, só nos anos 80 é que eles adquirem relevância pública.
A derrota da Guerra do Vietname (1975), a demissão de Richard Nixon da presidência (1974) e a crise do petróleo (1973) geraram um sentimento de fracasso, desencanto e mal-estar na sociedade americana semelhante ao que se vive em 2020. A este clima de mal-estar deve acrescentar-se o caso Roe v. Wade (1973), no qual o Supremo Tribunal anulou a proibição nacional do aborto e dividiu o debate político e religioso entre os sectores pro-choice (pró-escolha) e pro-life (pró-vida). Estes fatores geraram num determinado setor da sociedade americana um apelo à renovação moral e à recuperação da identidade da América como nação cristã. Nesta missão, o movimento de raiz evangélica Moral Majority tem desempenhado um papel fundamental, mediante a capacidade dos pastores para mobilizar o voto e conseguir representação no Congresso, apoiando os candidatos republicanos. Este grupo religioso reagiu àqueles que considerava serem os “males da sociedade americana”: os que colocavam em crise a conceção tradicional de família (movimentos feministas, movimento gay e aborto) e o movimento pacifista. Face a estes “males” era necessário recuperar o músculo moral da sociedade americana, juntamente com uma política externa que salvaguardasse a ordem judaico-cristã contra o ateísmo da URSS.
Com efeito, a intenção de Reagan de recuperar a moral do país logo após aquela crise sistémica, (o seu slogan de campanha era: Let’s make America great again) consistia, por um lado, em recuperar os valores da nação, o que ele fez apresentando o Partido Democrata como um partido que desprezava a religião e os valores morais. Por outro lado, a intenção de Reagan de se opor ao “império do mal” representado pela URSS, e o sucesso que teve na sua queda, reavivou a autoperceção da nação americana e do seu destino manifesto.
O aborto transformou-se no tema principal que deveria determinar a agenda política católica, gerando uma batalha cultural no seio da Igreja nos EUA.
Ao mesmo tempo, uma das ênfases do pontificado de São João Paulo II foi a defesa da vida, que se materializou num forte compromisso com os direitos humanos. A partir deste paradigma, o Papa opôs-se à pena de morte, à eutanásia e ao aborto, porque compreendeu que eles são um mal intrínseco em qualquer circunstância. Este impulso, favoreceu que a questão do aborto se tivesse tornado um fator determinante para muitos eleitores católicos americanos, os quais, por seu lado, se encontraram essencialmente representados nas posições do Partido Republicano.
Deste modo, o aborto transformou-se no tema principal que deveria determinar a agenda política católica, gerando uma batalha cultural no seio da Igreja nos EUA. Por um lado, estão os que consideram o aborto como a única questão a ser considerada no momento de decidir o voto. Por outro, estão os que consideram o aborto como um mal que deve ser considerado num contexto mais amplo, juntamente com outras estruturas de pecado que se expressam em realidades como o racismo, as alterações climáticas, a falta de acesso à saúde, a pobreza e a migração. Portanto, a proximidade de Trump a grupos pró-vida (de facto, Trump foi o primeiro presidente dos EUA a assistir à Marcha pela Vida em Janeiro passado), a sua nomeação de juízes conservadores para preencher vagas no Supremo Tribunal e a sua defesa da liberdade religiosa a nível global como um novo destino manifesto da nação americana, transformou o Partido Republicano no domicílio político de muitos católicos norte-americanos.
A proximidade de Trump a grupos pró-vida (de facto, Trump foi o primeiro presidente dos EUA a assistir à Marcha pela Vida em Janeiro passado), a sua nomeação de juízes conservadores para preencher vagas no Supremo Tribunal e a sua defesa da liberdade religiosa a nível global como um novo destino manifesto da nação americana, transformou o Partido Republicano no domicílio político de muitos católicos norte-americanos.
Desde este ponto de vista, as três ações de Trump no início da semana passada possuem intenções muito fortes. Num momento em que tem sido criticado, tanto pela forma como lidou com a crise sanitária, económica e social, como pelo uso da força para reprimir os protestos que surgiram nos últimos dias, o apelo ao sentimento religioso constitui uma tentativa de mobilizar dinâmicas sociais profundamente enraizadas no imaginário religioso americano. É uma tentativa desesperada de voltar a encantar as suas bases de apoio (especialmente cristãos evangélicos e católicos “conservadores”), a fim de conseguir a reeleição. Esta atitude pode ser atrativa para alguns crentes, ao permitir que as suas ideias morais possam formar a moral pública e, assim, assegurar a desejada “sociedade moral”.
Perante isto, alguns textos da tradição católica podem ajudar-nos a clarificar a justa relação entre religião e política.
O Concílio Vaticano II, no número 36 da Constituição que trata da relação entre a Igreja e o mundo moderno Gaudium et Spes, afirma a “autonomia das realidades temporais”. Através deste conceito, a Igreja reconhece que a vida política tem um regime que não pode estar sujeito a nenhum poder além da Constituição, das leis e da vontade popular expressa através do sufrágio. Por outras palavras, neste regime político democrático constitucional, como a Chanceler alemã Angela Merkel brilhantemente o expressou, o modo de argumentação das decisões “não é por imposições, mas por conhecimento partilhado e participação”.
Por outro lado, o número 26 da Gaudium et Spes afirma que o sentido da comunidade política é o bem comum, que define como “a soma das condições de vida social que permite o desenvolvimento dos indivíduos e dos grupos”.
A religião, especialmente o catolicismo com o seu respeito pela tradição democrática e pelos direitos humanos, tem em si os meios para enfrentar tentações autoritárias, não permitindo a sacralização do poder político e defendendo aqueles que sofrem com os seus desvios, construindo uma casa comum com pluralismo, respeito e tolerância.
Do nosso ponto de vista, uma relação saudável entre religião e política deve ter em conta uma combinação entre um modo que respeite a autonomia da sociedade mas que esteja, ao mesmo tempo, atenta às condições sociais que garantem uma vida digna para cada membro da sociedade. Nesse sentido, num contexto de polarização e violência estrutural, a religião deve ser capaz de argumentar e discutir a procura de soluções comuns que tenham em conta o bem-estar de todas as pessoas. No espírito de São João Paulo II, uma verdadeira “cultura de vida” é aquela que garante e protege a dignidade da pessoa humana, com especial ênfase nos mais fracos, como os não nascidos, os migrantes, os discriminados por causa da raça, situação social ou religião.
Num contexto de divisão e fratura social, a religião tem a possibilidade de alimentar um consenso que procura a justiça social baseada na virtude do diálogo, da hospitalidade e do respeito mútuo. Os exemplos de Dorothy Day e Martin Luther King são testemunho do enorme potencial da religião nos Estados Unidos para cumprir o ideal de liberdade, igualdade e justiça. Por sua vez, a religião, especialmente o catolicismo com o seu respeito pela tradição democrática e pelos direitos humanos, tem em si os meios para enfrentar tentações autoritárias, não permitindo a sacralização do poder político e defendendo aqueles que sofrem com os seus desvios, construindo uma casa comum com pluralismo, respeito e tolerância.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.