No domingo catorze de novembro celebrou-se o Dia Mundial dos Pobres. Em Assis, o Papa Francisco ouviu testemunhos de muitos presentes e lembrou que é tempo de restituir a palavra aos pobres porque durante demasiado tempo os seus pedidos não foram ouvidos. Chamou a atenção para o estado das desigualdades em que vivem tantas famílias e questionou discursos políticos que fazem dos pobres responsáveis pela sua condição e mesmo um peso intolerável para o sistema económico.
O estado da habitação expressa bem essas desigualdades. Em Portugal, em pleno século XXI, muitas pessoas e muitas famílias estão ainda privadas do acesso a uma habitação condigna. Muitas continuam a residir em habitações sobrelotadas, habitações que não dispõem de condições de conforto e salubridade e habitações degradadas. Com os baixos salários de que dispõem, muitas famílias gastam dos seus rendimentos mensais com habitação muito mais do que o recomendado internacionalmente, os jovens vivem com os pais até muito para lá do que gostariam adiando a sua independência e a constituição de família. O elevado valor das rendas compromete também o direito à educação de muitos deles. Nas cidades as populações são expulsas dos bairros históricos e centrais para darem lugar aos hotéis, alojamentos locais e habitações de luxo e o direito à habitação perde-se face à especulação imobiliária. A epidemia de COVID-19 veio agravar estas situações de miséria e de exclusão social tornando mais difícil a resistência de inquilinos com fracos recursos face ao poder dos grandes grupos financeiros dominantes no imobiliário.
Contudo, o Direito Humano a uma Habitação Condigna é um dos direitos económicos, sociais e culturais que encontra expressão, designadamente, no artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Uma habitação condigna supõe o acesso permanente aos recursos naturais e comuns: água potável, energia para cozinhar, aquecimento e iluminação, instalações sanitárias e de limpeza, meios de conservação de alimentos, sistemas de recolha e tratamento de lixo, esgotos e serviços de emergência. Os custos financeiros da habitação não devem comprometer a satisfação de outras necessidades básicas e, portanto, devem ser compatíveis com os níveis de rendimento.
Uma habitação condigna supõe o acesso permanente aos recursos naturais e comuns: água potável, energia para cozinhar, aquecimento e iluminação, instalações sanitárias e de limpeza, meios de conservação de alimentos, sistemas de recolha e tratamento de lixo, esgotos e serviços de emergência.
Segundo o Comité sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, aos Estados incumbe agir de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício destes direitos por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas. No plano nacional este direito está consagrado na Constituição da República Portuguesa no seu artigo 65.º, dando o artigo 70º particular atenção aos jovens.
Se com o Novo Regime do Arrendamento Urbano em 2006 se previam formas de transição das chamadas “rendas antigas” e de proteção para os arrendatários mais vulneráveis, as alterações legislativas posteriores, nomeadamente a Lei 31/2012 de 14 de agosto, foram no sentido de restringir essa proteção e facilitar os despejos, libertando as habitações para a especulação imobiliária.
Em 2019 foi publicada a Lei de Bases da Habitação e recentemente o Governo aprovou dois Decretos-Leis a regulamentá-la. Atribui-se aos municípios o direito de preferência na compra de casas devolutas bem como de arrendamento para posterior subarrendamento e estabelece-se os termos em que se passará a desenvolver a atividade de fiscalização do arrendamento habitacional.
Já é um passo, é verdade, mas esta legislação não vem resolver o problema da habitação. Empurra para as autarquias uma matéria para a qual não têm competências suficientes nem condições orçamentais para resolver estas situações. Não bastam medidas pontuais que não mexem com os interesses económicos e financeiros instalados.
O direito à habitação garante-se protegendo o arrendamento, não privilegiando as atividades financeiras e especulativas, em detrimento das populações e da satisfação das suas necessidades. É importante não deixar cair no esquecimento que a falta de mercado de arrendamento em Portugal se deve, num clima de progressiva liberalização e desregulamentação do setor bancário, ao facto de grandes grupos monopolistas desse setor terem recebido a oferta de milhões de euros sob a forma de bonificação aos créditos bancários na aquisição de habitação. Este processo conduziu ao aumento da percentagem de famílias com habitação própria, diminuindo a percentagem de fogos no regime de arrendamento. Sobre esta pequena percentagem de habitação arrendada, voltou o capital financeiro a investir, desta vez na reabilitação urbana, apropriando-se dos imóveis e expulsando as famílias que neles viviam e que pensavam ter nos seus contratos de arrendamento a garantia de uma habitação para a vida.
É urgente dar resposta aos problemas e ameaças mais urgentes que se colocam a muitas famílias deste País no que toca ao acesso ao direito à habitação.
Nesse sentido é importante se não revogar, pelo menos rever a Lei 31/2012, também conhecida por “lei dos despejos”, não permitindo que os contratos anteriores a 1990, os das chamadas “rendas antigas” fiquem com um regime totalmente liberalizado, bem como outros contratos nas situações relacionadas com inquilinos com mais de sessenta e cinco anos ou com um grau de incapacidade superior a sessenta por cento. Não permitir a expulsão destas famílias para fora das suas casas. Garantir o apoio, acompanhamento e proteção social das famílias nas situações de processo de despejo e a suspensão do mesmo quando se verifiquem situações de fragilidade por falta de alternativa habitacional.
É urgente dar resposta aos problemas e ameaças mais urgentes que se colocam a muitas famílias deste País no que toca ao acesso ao direito à habitação.
A estabilidade no arrendamento exige o aumento do número de habitações arrendadas, seja em regime de renda livre, condicionada ou apoiada. Para isso é indispensável um forte investimento público e a criação de parcerias para a produção de habitação não lucrativa ou não mercantilizada.
No contexto atual que ainda vivemos da COVID 19, é necessário o alargamento do Regime Extraordinário de Proteção aos Arrendatários que está em vigor por causa da pandemia e que termina no final do ano. Dar tempo às famílias para se reorganizarem após a pandemia e antes do início do período de regularização das rendas.
O Estado deve assumir a responsabilidade que é sua em vez de a deixar na “mão invisível do mercado” e dos privados ou assumir opções que subsidiam a especulação financeira e imobiliária. Defender o direito à habitação para todos, de acordo com o rendimento disponível das famílias, que satisfaça as suas necessidades e assegure o seu bem-estar, privacidade e qualidade de vida.
Como nos recorda o Papa Francisco na Carta Encíclica Fratelli Tutti: «A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos».
Fotografia de Khachik Simonian – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.