Os tempos que vivemos têm sido particularmente duros. Além de ter de conviver com as dores de crescimento da globalização e com os sobressaltos causados pelo ritmo vertiginoso dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, a humanidade está a braços com uma pandemia mais longa e persistente do que podíamos imaginar. Ao mesmo tempo, o panorama político vai sendo povoado por personagens excêntricas que assumem o papel de messias e de intérpretes iluminados do humor e da vontade dos povos.
A emergência do «admirável mundo novo» está a ser mais turbulenta do que podíamos imaginar. Não existem remédios fáceis para as enfermidades do tempo que vivemos. E a descoberta de novas vacinas demora mais tempo do que pensávamos. Parece-me óbvio, no entanto, que o grande recurso que temos à nossa disposição é, e sempre será, a nossa capacidade de pensar. Nós, humanos, não somos só razão. E ainda bem. Mas somos também razão e é a razão que nos distingue das outras espécies animais. É por isso que acredito que a redescoberta da filosofia como arte de pensar – sobre a vida, sobre o mundo, sobre nós próprios – pode ajudar-nos a encontrar o rumo, nas águas tumultuosas que navegamos.
Nós, humanos, não somos só razão. E ainda bem. Mas somos também razão e é a razão que nos distingue das outras espécies animais.
No livro Sete Razões para Amar a Filosofia, publicado em Itália e 2019 e em Portugal em julho deste ano, pelas Edições 70, o filósofo italiano Giuseppe Cambiano apresenta boas razões para arriscarmos (re)descobrir a filosofia. Não é meu propósito reproduzir com detalhe a reflexão do autor. No entanto, tomo emprestadas três das suas sete razões para amar a filosofia, com o propósito de sugerir que a «velhinha» filosofia pode ainda ensinar-nos a arte de bem viver o tempo presente, com as suas sombras e as suas luzes.
Primeiro, a filosofia ensina-nos a «fazer perguntas». Boas perguntas. O conhecimento, quer seja do mundo, quer seja de nós próprios, avança ao ritmo das perguntas que fazemos. A filosofia pode, ainda, ensinar-nos a arte de perguntar. À medida que vou aprendendo a viver, tenho-me dado conta de que perguntar é a melhor maneira de manter viva uma boa conversa. É também a única forma de manter viva a nossa curiosidade e o nosso espírito crítico. As perguntas, se são honestas e genuínas, mantêm viva a nossa abertura aos outros, ao mesmo tempo que temperam o nosso dogmatismo. Creio que muitas das tensões dos tempos em que vivemos se poderiam dissipar se usássemos mais o ponto de interrogação e menos o ponto de exclamação.
À medida que vou aprendendo a viver, tenho-me dado conta de que perguntar é a melhor maneira de manter viva uma boa conversa. É também a única forma de manter viva a nossa curiosidade e o nosso espírito crítico.
Segundo, a filosofia pode ensinar-nos a «apreciar a discordância». Creio que não exagero se disser que muitas das nossas conversas se vão transformando em autênticos diálogos de surdos. Num mundo cada vez mais polarizado e fraturado é fácil sucumbir à tentação de entrar no «jogo das trincheiras»: fecho-me na minha opinião e encaro como inimigo todo aquele que der voz a uma opinião diferente. A filosofia é a arte de pensar, mas é também a arte de dialogar. Aliás, «pensar» e «dialogar» são duas atividades correlativas.
Sócrates, um dos maiores filósofos de todos os tempos, pensava enquanto conversava, com a convicção de que a verdade viria à luz através de um processo lento e apaixonado de confronto de opiniões e argumentos. Na obra Sem Fins Lucrativos: Porque Precisa a Democracia das Humanidades (Edições 70, 2019), Martha Nussbaum defende que o pensamento socrático é importante para manter saudáveis as nossas democracias. «A ideia de que cada um assumirá a responsabilidade pelo seu próprio pensamento, trocando ideias com os outros, numa atmosfera de mútuo respeito pela razão, mostra-se essencial para uma resolução pacífica das diferenças, seja a nível nacional seja num mundo cada vez mais polarizado pelo conflito étnico religioso». Em suma, a filosofia pode ensinar-nos que a divergência de opiniões não é um problema. O problema é não sermos capazes de «apreciar a discordância».
Terceiro, a filosofia pode ajudar-nos a «compreender os outros». Quando, há vários anos atrás, comecei a estudar filosofia, dei-me conta de que o meu mundo se foi progressivamente tornando mais vasto, mais rico e mais aberto. Havia, afinal, formas de interpretar o mundo e a vida que eu nunca tinha imaginado. A Filosofia alarga os nossos horizontes. Bertrand Russel, no século passado, disse que «o homem sem filosofia passa pela vida fechado nos seus preconceitos ditados pelo senso comum, pelas opiniões mais comuns do seu tempo e da sua terra e pelas convicções criadas na sua mente sem o consentimento nem a colaboração da vontade. Para semelhante homem, o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio; os objetos da vida quotidiana não levantam problemas, e as possibilidades insólitas são rejeitadas com desprezo».
A filosofia não será, certamente, a vacina milagrosa para as muitas maleitas do nosso tempo. Pelo menos não o fará com a velocidade que desejaríamos. Porque a filosofia não aceita correr ao ritmo frenético da era digital. Acredito, no entanto, que a (re)descoberta da filosofia pode, pelo menos, devolver aos nossos diálogos decência e razoabilidade e guiar-nos na construção de um mundo mais luminoso. Hoje, dia 19 de novembro, celebra-se o dia mundial da filosofia. Talvez seja uma boa ocasião para voltar a abrir um bom livro de filosofia – deve haver algum nas estantes de sua casa –, para (re)aprender a arte de bem pensar e bem perguntar. Boa leitura!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.