Fico feliz por não ser nenhum homem a decidir o caminho da eternidade…

O cumprimento escrupuloso de uma série de regras não leva a uma relação de confiança e amor. Eu, pessoalmente, não tenho nenhum amor pelo código da estrada e tenho que o cumprir todos os dias...

Marcos (10,17-27), o Evangelista que acompanhamos neste ano B, descrevia há umas semanas (28º Domingo do Tempo Comum, dia 10 de outubro) um encontro importante de Jesus com um homem que busca, nas suas palavras, o que deve «fazer para alcançar a vida eterna». Conhecido como “o homem rico”, Jesus pergunta-lhe se conhece os mandamentos e ele responde: «Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude».

Poucas passagens bíblicas nos falam tanto da vida eterna como esta. Ali, diante de Jesus, está alguém para quem ela é uma conquista. Algo que seria somente alcançável pelo esforço, ou pelo dinheiro, nunca como uma graça de Deus, nunca como uma doação. Aliás, naquele homem não havia espaço para relações desinteressadas e amorosas. Tudo era comprado, ou conquistado com o seu esforço humano. E por isso se questionava e questionava o Senhor sobre o que deveria fazer, pois acreditava que a entrada no Reino de Deus era um “toma lá, dá cá”, de quem cumpre uma lista de preceitos, como se fosse seguindo uma receita para o sucesso, passo a passo, ponto a ponto, sem margem para falhas ou para a intervenção da graça.

E, no entanto, essa vida eterna não é uma recompensa, nem é meta alcançável pelo escrupuloso cumprimento dos mandamentos de Deus. Vemos, no mesmo texto, que ela é continuidade da nossa relação de Amor com o Altíssimo. Percebemos que é confiança, centralidade e certeza de que é o Pai que nos salva, num ato que vai muito para além das nossas possibilidades humanas, mas salva-nos porque nos ama e sabe o quanto confiamos n’Ele.

Eu interrogo-me, tal como eles: vale a pena avaliar o nosso ser cristão pelo cumprimento dos mandamentos? Será que seremos mais, ou menos filhos do Salvador na medida em que cumprimos, mais, ou menos, a Lei com todos os pormenores que a imaginação humana é fértil em colocar?

O ponto seguinte do texto é de uma enorme riqueza e beleza e obriga-nos à reflexão final sobre este tema. Diz: «Jesus, fixando nele o olhar, amou-o e disse-lhe: “Falta-te uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu. Então vem e segue-me”». Este amor de Deus para com um homem que pretende escolher um caminho de Santidade desperta logo os nossos sentidos e emoções. Jesus é bom, dito por este homem e essa bondade só existe porque Deus o ama e ama infinita e misericordiosamente. Ao contrário do que pensa e sente o homem rico, não porque ele é bom e procura cumprir os mandamentos, mas porque é um filho querido, que procura o Pai, que o quer encontrar, independentemente de saber, ou não, o caminho a tomar. É esta a riqueza genuína e verdadeira deste homem, mas ele não a vê… E fica perplexo com a proposta de Jesus. Chocado, é a palavra do evangelista. Triste, porque «tinha muitas posses», parte.

«Quem pode, então, ser salvo?», perguntavam os discípulos.

Eu interrogo-me, tal como eles: vale a pena avaliar o nosso ser cristão pelo cumprimento dos mandamentos? Será que seremos mais, ou menos filhos do Salvador na medida em que cumprimos, mais, ou menos, a Lei com todos os pormenores que a imaginação humana é fértil em colocar? Por oposição, creio que é verdadeiramente mais cristão avaliarmo-nos pela nossa capacidade de amar e confiar em Deus, concretizada no amor ao próximo. Até porque, como estamos a ver, através das palavras de Jesus, proferidas neste episódio, o cumprimento escrupuloso de uma série de regras não leva a uma relação de confiança e amor, e essa, sim, é essencial para esse caminho de eternidade. Eu, pessoalmente, não tenho nenhum amor pelo código da estrada e tenho que o cumprir todos os dias…

Mas fico triste com o número crescente de católicos que recorrem aos mandamentos como arma de arremesso para distinguir quem é, ou quem não é bom cristão. E questiono-me: não será uma substituição à justiça, à misericórdia d’Ele, pois só Ele torna possível, no Seu amor infinito, a salvação eterna? O homem não alcançará, pelos seus méritos, a vida que há-de vir, nem pode comprá-la ou trocá-la.

Será que o caminho da eternidade está aberto a cristãos que pensamos que não são dignos? Não tenho dúvidas. Foi Ele quem o afirmou: «Fixando neles o olhar, Jesus disse: “Aos homens é impossível, mas não a Deus, pois tudo é possível a Deus”». Por isso, o homem crucificado a Seu lado, apesar de não cumprir os mandamentos, teve um lugar no Céu.

Fico feliz por não ser eu, nem nenhum homem, a decidir o caminho da eternidade. Nunca seria justo.

Fotografia: Akira Hojo – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.