O Padre Armindo Duarte, pastor e grande homem do Concílio, tinha o dom de delegar e não hesitava em dar missões pastorais a jovens leigos cuja fé irradiava alegria e gosto de comunicar. Em Santa Isabel, fiz parte do grupo de preparação das homilias (vinha de Letras e já tinha vivido as primeiras greves académicas). Simultaneamente, como jovem casal entre outros, foi-nos destinado o acolhimento dos noivos que vinham fazer o Curso de Preparação para o Matrimónio (CPM). Foram anos extraordinariamente difíceis, tanto do ponto de vista social como político, em plena guerra colonial. Ser ortodoxo e ter de explicar a Humanae Vitae a jovens para quem todo o processo era difícil de entender e de pôr em prática, tendo no horizonte o serviço militar obrigatório e uma comissão de serviço em Bissau, no mato ou na floresta do Maiombe.
Anos mais tarde, no Campo Grande, já em contexto diferente, o Padre Armindo decidiu que, como editora, tomaria a responsabilidade da Folha Informativa. Em relação ao trabalho pastoral que mais me seduzia – o acolhimento – passaria a receber personalizadamente, à porta fechada, os pais e padrinhos que pediam o batismo para as crianças até aos cinco anos, entre outros. O meu local de trabalho era uma sala pequena, como ainda é hoje, onde cabia a família, o carrinho do bebé e um ou dois irmãos mais velhos que eu punha a desenhar. Quando o Padre Armindo adoeceu, o Padre Vítor Feytor- Pinto manteve intacta a “receita” do seu antecessor. Ainda hoje, não há Curso de Preparação para o Batismo (CPB) sem acolhimento prévio. Só eu acolho semanalmente, mas há toda uma equipa que faz as preparações. Cada vez mais nos surpreende o conceito do Padre Armindo (acolhimento e preparação personalizados), que se tem revelado profético. Compreendemos claramente que o seu objetivo era enraizar em nós a arte de lançar pontes para criar relacionamentos num tempo em que o acolhimento e a preparação para o batismo se tornaram para a Igreja uma oportunidade de evangelizar famílias.
Acolher e traduzir
De braços abertos e sem perder tempo, o Padre Armindo distribuiu-me ao longo dos anos o trabalho pastoral com uma naturalidade que me desarmava e, apesar da falta de tempo, me fazia aceitar a responsabilidade. Desde a primeira tarefa que me foi confiada, percebi que era chegada a altura de passar de uma cultura elitista e académica, lançando pontes para novas culturas diversificadas, com conotações linguísticas próprias, que denunciavam outros meios e grupos sociais. Um desafio que definiria hoje com as palavras do Papa Francisco: “Cristo bate hoje à porta do teu coração; bate tu também à do coração dos irmãos.”
Dialogar com uma família de etnia africana, cigana, eslava, com pessoas residentes em bairros degradados, não necessariamente por palavras, resulta sempre quando se têm bem aprofundadas as perguntas do Papa Francisco – “Estais cientes do valor inestimável que tendes aos olhos de Deus? Sabeis que Ele vos ama e acolhe, incondicionalmente, assim como sois?” –, que fazem brotar no olhar, nos gestos e nas palavras daqueles que tanto procuram o encontro com os irmãos. E então lá está a alegria a aguçar a sensibilidade do coração e a coragem de ouvir, ouvir sempre, e compadecer-se das pessoas magoadas com a própria vida, dos jovens desprotegidos, de todos os que se sentem rejeitados …
Beber da frescura da fonte
Na década de 60 do século passado, o ideal nos estudos literários na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa era saborear no original as obras dos grandes autores clássicos. Entre outros, ler Kafka, Shakespeare, Dante, Cervantes, Goethe, os dramaturgos norte-americanos e a grande poesia europeia era o objetivo da aprendizagem das línguas.
À altura, a grande falha no curriculum de centenas de estudantes era apontada semanalmente pelo Padre Manuel Antunes. O mestre, ao escrever com giz no quadro verde uma palavra grega, voltava-se para o auditório e dizia sempre com ar sombrio: “para quem não sabe grego, transcrevo imediatamente”.
Os que ganharam o gosto pelo estudo das línguas, e a vida lhes consentiu, chegaram ao grego e ao hebraico e foram abençoados com a verdadeira emoção de distinguir os diferentes estilos dos evangelistas e seguir a tradução de um salmo do hebraico.
Babel e Pentecostes
No entanto, na história da cultura ocidental, sempre houve pessoas que aprendiam línguas com a finalidade de expandir os intercâmbios humanos para cumprir objetivos políticos, religiosos e científicos. Os tratados científicos, matemáticos, teológicos, jurídicos, tudo o que de verdadeiramente importante se produzia nas universidades, era escrito em latim até ao século XVII.
A Bíblia foi traduzida pela primeira vez para grego, a designada Versão dos Setenta ou LXX; São Jerónimo traduziu-a para latim, a denominada Vulgata. Já na Reforma – que está a ser comemorada nos seus 500 anos – Lutero traduziu-a para alemão, confiante de que “germanizava” o latim de São Jerónimo e criava a língua alemã. A efeméride, que tem vindo a ser celebrada, reavivou nos cristãos católicos e reformados muito do que ocorreu posteriormente na história da Igreja até ao Concílio Vaticano II, neste caso a importância da utilização do vernáculo na liturgia.
Em suma, ao longo da história do Ocidente sucederam-se os contributos grego, latino, hebraico (este arrastando consigo línguas faladas no mundo bíblico) e floresceram os grandes períodos de expansão cultural da Idade Média ao Renascimento e à Reforma, ao século das Luzes e ao Romantismo, em que a tradução foi um meio de recuperar textos antigos que se julgavam perdidos.
Nas últimas décadas do século passado, “para que as frases do mundo inteiro não esvoaçassem entre os homens como borboletas inacessíveis”, nas palavras de Paul Ricoeur, era preciso que fosse nobilitada a tarefa da tradução. A partir das teorias de grandes nomes da filosofia, linguística e literatura, como George Steiner, Walter Benjamin, Umberto Eco, Benveniste, Rilke foi possível dar um novo estatuto à tradução, que já se iniciara com os autores românticos alemães depois de Goethe, o grande clássico (Novalis, os irmãos Schlegel, Schleiermarcher …).
Todos temos presente a primeira Carta aos Coríntios, onde no capítulo 12,10.28 S. Paulo fala dos dons do Espírito Santo, os carismas, e do seu uso na assembleia. Ao referir o dom das línguas (glossolalia), explica que tem de ser acompanhado de interpretação, inteligência, profetismo, porque uma coisa é falar para Deus e outra para a assembleia. “Assim também vós; já que estais ávidos dos dons do Espírito, procurai adquiri-los em abundância, mas para edificação da assembleia. Por isso, o que fala em línguas reze para obter o dom da interpretação.” (1Cor 14,12.13)
É esta interpretação ou discernimento que são necessários na Igreja para que a assembleia receba a palavra que lhe é dirigida e que a toca, pois é entendida.
Cultura literária e cultura relacional
Ecoam de novo as palavras do Papa a dar força à tarefa de acolher: “A verdadeira alegria não vem das coisas, do ter, não! Nasce do encontro, da relação com os demais, nasce do sentir-se aceite, compreendido, amado e do aceitar, do compreender e do amar, e isto não pelo interesse de um momento, mas porque o outro, a outra é uma pessoa. A alegria nasce da gratuidade de um encontro.”
Que poderei acrescentar a uma tal exortação? Apenas que, passadas décadas, os encontros semanais de acolhimento continuam a avivar em mim o refrão do Padre Vítor Feytor-Pinto – a felicidade está mais em dar do que em receber… Enquanto as famílias saírem alegres e confiantes, e as pessoas da paróquia me pedirem ajuda porque sou uma mulher alegre e disponível para todos, vou continuar.
O desafio, hoje, exige cada vez mais pontes e “tradução” porque o objetivo dos cristãos está em sair para chegar às periferias, às franjas, e oferecer-lhes um lugar de acolhimento e de paz, uma casa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.