Evangelizar a nossa atitude diante do tempo

Francisco inaugurou o seu ministério com uma poderosa chave de leitura para toda a ação pastoral e discernimento eclesial: “o tempo é superior ao espaço”.

O tempo é superior ao espaço

Agora que o pontificado do Papa Francisco se encerra com o seu regresso à casa do Pai, detenho-me com gratidão e reverência a contemplar o muito que nos foi oferecido pelo seu magistério. Não se trata apenas de uma série de frases sonoras, “sapatos pretos em vez de vermelhos” e gestos comoventes em geral, mas de algo, a meu ver, mais fundo e decisivo: um convite à conversão da nossa atitude diante do tempo. E, nesta expressão, cada palavra conta.

Tanto na encíclica escrita com Bento XVI, Lumen Fidei, como na exortação apostólica Evangelii Gaudium, Francisco inaugurou o seu ministério com uma poderosa chave de leitura para toda a ação pastoral e discernimento eclesial: “o tempo é superior ao espaço”. O Papa explica esta expressão do seguinte modo: “Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes”. (Evangelii Gaudium nº 223) No fundo, trata-se de uma mudança de atitude que desinstala. O que é mais importante: preservar o que temos ou gerar o que ainda não vemos? Defender o território ou confiar no crescimento? Recordo aqui as sugestivas palavras do teólogo dominicano Yves Congar:

“Uma profunda fidelidade ao cristianismo significa permanecer aberto tanto ao seu princípio, que é a tradição, como ao seu futuro; isto é, ser fiel àquilo que o Cristianismo pode ou poderá vir a ser a fim de alcançar a verdade que é desde sempre: católica (abraçando o todo). A fidelidade deverá abraçar estes dois aspetos“. (Yves Congar, Verdadeiras e falsas reformas na Igreja).

Esta mudança, aparentemente subtil, pode transformar profundamente o modo como nos situamos no mundo como cristãos — e talvez seja, no seu conjunto, o ponto mais decisivo que Francisco nos oferece e propõe.

 

Entre misericórdia e esperança

Neste horizonte, torna-se particularmente simbólico — e diria até poético — que o seu pontificado tenha sido enquadrado por dois jubileus: o da misericórdia, no início, e o da esperança, neste ano de 2025. É como se os dois marcos celebrassem dois pilares de uma espiritualidade cristã para viver o tempo, a história de um povo em devenir. Misericórdia para o passado, esperança para o futuro. Mas não são apenas disposições interiores ou devocionais. São atitudes missionárias. São formas de habitar o tempo de maneira cristã, redimida, fecunda. É um contagiar cristão da atitude certa para navegar um tempo que se adivinha imprevisível nas suas mudanças de curso.

Torna-se particularmente simbólico — e diria até poético — que o seu pontificado tenha sido enquadrado por dois jubileus: o da misericórdia, no início, e o da esperança, neste ano de 2025. É como se os dois marcos celebrassem dois pilares de uma espiritualidade cristã para viver o tempo, a história de um povo em devenir. Misericórdia para o passado, esperança para o futuro.

A misericórdia olha o passado com a lente da reconciliação, do recomeço possível, da ferida que pode ser sarada e tornar-se compaixão. A esperança olha o futuro com a confiança de que a bondade de Deus é mais forte que o mal, que a Vida entregue vencerá a morte, que o Reino está a crescer mesmo se, por vezes, escondido. Entre ambas (misericórdia e esperança), há um dinamismo missionário e eclesial impressionantes. “Não para justificar uma posição discutível, mas para dar possibilidade a que o Espírito possa agir a seu tempo”. (Papa Francisco, Aos Jesuítas reunidos na 36º Congregação Geral, 24 de outubro de 2016)

É neste espírito que se compreende o conjunto dos gestos mais comentados (e não poucas vezes contestados) do Papa. Gestos como a abertura pastoral à comunhão aos recasados e à bênção individual de pessoas homossexuais que desejam casar civilmente — sempre dentro do discernimento e acompanhamento eclesiais. Enquadram-se também aqui os seus apelos a recentrar a atenção crente no cuidado de uma criação ferida e na construção de uma fraternidade igualmente ferida. Não pela ânsia de reocupar o espaço mediático, reconquistar o que foi perdido pela Igreja, reabrir frentes ideológicas ou reafirmar um posicionamento teológico discutível. Trata-se de reformar a nossa cultura interior, de converter a nossa atitude diante do tempo: misericórdia para o passado, esperança para o futuro. Na verdade, se há algo que a morte e ressurreição de Cristo nos ensinam é que, se semeamos misericórdia, colheremos futuro.

Viver no tempo do ressuscitado

Misericórdia e esperança são como que gémeas siamesas. Se as separarmos, tudo se desequilibra e o que veremos são cópias baratas que, mais cedo ou mais tarde, nos desapontam os desejos e os passos. A misericórdia sem esperança torna-se condescendência, uma espécie de “laissez-faire” espiritual, que relativiza tudo por medo do conflito ou por cansaço moral. A esperança sem misericórdia, por sua vez, arrisca tornar-se ideologia, puro otimismo voluntarista, ou até rigidez beligerante: uma vontade de fazer vencer a “verdade” a qualquer custo, sem cuidar dos feridos pelo caminho. O nosso tempo conhece bem ambas as patologias: o relativismo complacente e o fanatismo endurecido. E ambas se alimentam, curiosamente, de uma má relação com o tempo: incapacidade de acolher o que foi, medo do que virá.

Jesus, pelo contrário, oferece-nos um modelo diferente. O episódio da mulher adúltera — central na sua carta apostólica Misericordia et Misera — é aqui paradigmático. Ao dizer “também Eu não te condeno”, oferece a misericórdia; ao acrescentar “vai e não tornes a pecar”, semeia a esperança. Ele cura sem banalizar, envia sem excluir, acolhe sem empobrecer a exigência. E tudo isto não num instante isolado, mas num tempo redimido. É a dulcis memoria deste olhar de Cristo — sobre o tempo humano e sobre cada ser humano no tempo — que o Papa Francisco nos anunciou com as suas palavras e gestos. Terá sido este o seu grande legado?

Seja como for, creio que evangelizar hoje passa, de forma urgente, por transformar a nossa atitude diante do tempo. Estamos demasiado habituados a pensar a missão em termos de ocupação espacial: conquistar corações, espaços públicos, números nas redes, seguidores no insta, likes nas nossas certezas. Mas talvez a evangelização mais difícil e necessária seja a nossa atitude diante do tempo: ensinar a confiar no processo, a esperar sem ansiedade, a reconciliar-se com o que foi, a sonhar com o que virá. E isto não depende da boa vontade mas da experiência de que o amor trinitário continua ativo na história, que Deus não desistiu de nós, que Cristo Ressuscitado vive e insufla na história um Espírito que ainda sopra — mesmo quando não sabemos bem de onde vem nem para onde vai.

Vivemos no tempo do Ressuscitado (!) e a Sua autoridade reside na Sua relação com o tempo. Por tudo isto e muito mais, penso que deveríamos dar graças a Deus por viver neste tempo, por termos testemunhado os doze anos deste pontificado, e por podermos, com Francisco e segundo o Espírito, discernir a presença do Senhor neste tempo, tomando parte das suas alegrias e esperanças, tristezas e ansiedades.  Porque se ressuscitamos com Cristo, semearemos misericórdia e colheremos futuro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.