O provérbio judaico “Deus não podia estar em todo o lado, por isso criou as mães” é divertido e uma falta de respeito. Quem pode estar em todo o lado, sabemo-lo, é Deus. Intuímos, porém, o elogio à maternidade, ao mesmo tempo que imaginamos que a força das lendárias mães judias será no mínimo omnisciente. “Estar em todo o lado” pode, então, ser uma crença tão consoladora e tranquilizante (o caso único de Deus) como sufocante e limitativa (o caso de qualquer pessoa).
Para quem é alvo da presença constante de outra pessoa, a ideia lembra uma arcaica canção dos Police. “Every move you make/ Every vow you break/ Every smile you fake/ Every claim you stake/ I’ll be watching you”. Tudo é motivo de observação, o bom e o mau vistos à lupa. Há quem chame a isto “amor” e há quem chame a Polícia.
Na medida sábia em que tudo o que é demais cansa, alguém que “está em todo o lado” é parecido com alguém que fala a toda a hora e age a todo o momento. Se vai a todas, é porque nenhum sítio tem mais relevância do que outro. Se está sempre a falar, a probabilidade de dizer disparates aumenta, e se está em constante movimento, então é porque finge acreditar que é útil. Não há mistério. É uma questão de estatística.
O caso mais paradigmático desta maneira estúpida de viver é Donald Trump, que todos os dias aparece, fala, twitta e agita os bracinhos para anunciar ao mundo que existe. É uma imposição desagradável e fútil que serve apenas como entretenimento tóxico ou distracção. A muitos causará ansiedade, e não será para menos, mas a outros Trump poderá parecer-se a uma amálgama de palavras sem nexo nem objectivo. Como um balão que se enche e esvazia a toda a hora, num contínuo de vazio e nada.
Foi bom por isso ver o nosso Presidente a fazê-lo parar para ouvir que Ronaldo não venceria eleições presidenciais em Portugal. Teve piada e teve razão. Foi refrescante, sobretudo neste nosso país que privilegia o humor autodepreciativo à graça da bazófia. Trump sorriu, um bocado atarantado, como se tivesse sido ultrapassado por alguém mais leve e mais rápido. Foi o que aconteceu. Este é o lado bom de Marcelo. É esperto como uma águia e rápido como um tigre. Infelizmente, estragou tudo quando decidiu ir cantar no palco do Rock in Rio como um rouxinol.
A culpa pode ser dos dias de hoje que têm este lado estúpido de haver um vazio para preencher, quando não há vazio nenhum mas apenas uma vida que não tem de ser vivida em público. A culpa pode ser dos jornais, sequiosos de “conteúdos” que tantas vezes nada mais são do que versões da “notícia” “Jane Fonda nunca mais se vai apaixonar”. Ficamos sem saber se estamos perante uma declaração de intenções ou uma ameaça. Tem ar de ameaça, não tem? “Olha que eu nunca mais me apaixono, ouviste?” Alguém avise Mrs Fonda que não depende dela.
A culpa pode também ser do próprio Marcelo, que é tudo do melhor que há e ao mesmo tempo tudo o que é excessivo e corre mal. Estava tudo tão bem, para quê ainda ir ao Rock in Rio falar à frente de um painel cheio de marcas publicitárias? Aquele tempo chuvoso não era o Zé Pedro presente no parque da Bela Vista! Era um sinal de que há dias em que o melhor é não dizer nada, não aparecer, não se mexer…
Olhemos para o Papa Francisco, que tem um contacto muito caloroso com as pessoas e que sai bastantes vezes do Vaticano. Acontece que todas as saídas têm um significado. Um dia foi comprar um par de óculos. Precisava de óculos novos, como qualquer um de nós. Noutro dia foi visitar pessoas à prisão, mostrando o que qualquer cristão deveria fazer. Isto para dizer que o Papa não é conhecido por estar “em todo o lado”. Possivelmente por saber que é humano, com limitações a que deve atender.
Acarinhemos as barreiras e as ausências, pois é delas que somos feitos. Façamos o melhor que pudermos, como naquele célebre poema de Kaváfis, e não nos queiramos transformar em super-heróis, caindo no ridículo por não sermos divinos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.