Primeiro, toca o despertador – ou os filhos, que têm o mesmo efeito, logo pela manhã. A seguir começam as notificações do telefone, as solicitações das crianças, o mundo exterior a invadir-nos o dia e a agenda, enquanto ainda estremunhados nos arrastamos para o banho, fazemos café, preparamos pequenos-almoços, ouvimos notícias.
O dia começa e os telefones não param – desde que os telefones servem para mais do que telefonar, a gestão da sua atividade complicou-nos bastante a vida, verdade? – nem tão pouco as obrigações profissionais. As horas e os dias passam a voar entre listas de tarefas intermináveis, redes sociais, alertas e nós a sentir que estamos a falhar em alguma coisa, embora teimemos ignorar em quê.
“Já não te vejo há imenso tempo”
– Havemos de marcar algo.
“Devíamos ir ao cinema”
– Para a semana tentamos.
“E se fôssemos ver aquela exposição?”
– Ainda temos dois meses, não é?
Sabemos que em 90% dos casos as conversas que começam assim acabam invariavelmente sem nenhum objetivo cumprido. Fica sempre tudo para amanhã, para depois. Às vezes reservamos um final de semana para fazermos tudo o que não fizemos nos últimos meses e então aí é outro desafio: pequeno-almoço com uns; almoço com outros; lanche com terceiros e por que não encaixar ainda um jantar onde chegamos todos estoirados, mas com a certeza de que temos que ali estar? Nos entretantos conseguimos ter dois dedos de conversa com maridos, mulheres, namorados, namoradas, filhos e animais de companhia, ainda despachamos umas tarefas rotineiras, que a cozinha e a roupa não se arrumam sozinhas.
Quando estávamos a viver o período do Grande Confinamento, muitos (eu incluída) foram aqueles que vaticinaram uma mudança radical nas nossas vidas: vamos todos ficar mais em casa, dedicar tempo ao que e a quem realmente importa.
Quando estávamos a viver o período do Grande Confinamento, muitos (eu incluída) foram aqueles que vaticinaram uma mudança radical nas nossas vidas: vamos todos ficar mais em casa, dedicar tempo ao que e a quem realmente importa; vamos mudar a forma como vivemos nas últimas décadas, depois de termos percebido que afinal tudo é efémero, até a liberdade de movimentos. Durante o Confinamento tivemos tempo para conversar, saber uns dos outros, cozinhar, remodelar a casa, pensar, estar sós. Houve relações que terminaram, outras que se reforçaram, outras que começaram, e viagens interiores importantes realizadas, acredito.
Comparámos o Confinamento a uma Guerra, esquecendo-nos de que, sobretudo dentro da privilegiada bolha de quem não perdeu empregos, rendimentos ou entes queridos, em nenhum dia tememos um acordar sem casa ou sem comida. Sem vida. Aquilo por que passámos, pelo que ainda vamos passar, é trágico mas não é uma Guerra. E na verdade, não nos fez mudar grande coisa.
O Estado de Emergência acabou em maio, e em junho já havia empresas a pedir que os funcionários regressassem aos postos de trabalho, os horários voltaram à loucura de antes, os desejos e anseios de uma vida mais simples desapareceram mais rápido do que se esperava. E nós voltámos a esquecer-nos da importância de estar.
Estar, apenas, com o outro. Ouvir-lhe o silêncio – ou os desabafos –, guardar-lhe o sono, receber-lhe os anseios, conhecer-lhe as pausas, alegrarmo-nos com os sucessos, chorar com as dificuldades, ouvir uma música, ler livros sentados lado a lado. No caso dos filhos, vê-los brincar e crescer e desenvolver uma personalidade tão só sua, ouvir-lhes as preocupações e os devaneios típicos de cada idade.
Mas estar, também, apenas connosco. Darmo-nos tempo para o cansaço que todos sentimos neste ano tão atípico, libertarmo-nos dos anseios que a incerteza nos traz, percebermos o que nos faz felizes ou tristes, olhar para o caminho e traçar estratégias com a liberdade que a pressão do tempo nos não permite.
Darmo-nos tempo para o cansaço que todos sentimos neste ano tão atípico, libertarmo-nos dos anseios que a incerteza nos traz, percebermos o que nos faz felizes ou tristes, olhar para o caminho e traçar estratégias com a liberdade que a pressão do tempo nos não permite.
Estar. Estar. Estar. Como dizia uma amiga muito querida, no outro dia, “não há como o tempo para fortalecer relações. Connosco e os outros”. Saibamos, assim, ter tempo para estar. E usá-lo sem medos.
Porque rapidamente voltámos a apertar compromissos dentro de finais de semana, a estipular uma agenda de coisas que é suposto fazer, a perder-nos entre prioridades que antes tínhamos dito que não voltariam a ser as nossas. Voltámos a esquecermo-nos da importância do silêncio, de estar, sem horários, connosco e com os que nos são mais queridos, e da evidência que parecia ter-se tornado tão clara durante o Confinamento: “a vida não vai parar / vai como o vento/ tens tudo a dar / não percas tempo…”
E é esse o desafio a que gostava de vos convidar – e que tentarei cumprir, também – nos meses que aí vêm: saber estar. Convosco, com aqueles que vos fazem sentido. Saibamos estar. Apenas. E ouvir o que essa partilha de tempo e silêncio e palavras tem para nos ensinar. Sobre nós e a aquilo que gostávamos de deixar nos outros e no mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.