O aumento progressivo da esperança média de vida[1] das populações é, sem qualquer dúvida, um relevante indicador das melhorias progressivas das condições de vida das pessoas. Em Portugal, este valor é impressionante, com um aumento significativo desde que existem dados disponíveis: segundo dados da Pordata[2], em 1970, a esperança de vida à nascença era de 67,1 anos (64 anos para os homens e 70,3 anos para as mulheres) e, em 2020, este valor situava-se nos 80,7anos (77,7 anos para os homens, 83,4 anos para as mulheres). Apesar de a pandemia ter feito diminuir a esperança de vida entre 2019 e 2020, consegue-se perceber facilmente que em 50 anos esta aumentou 13,6 anos. Outro indicador interessante é o da esperança de vida aos 65 anos[3], a partir do qual podemos saber que em 1970, chegadas aos 65 anos as pessoas viveriam em média mais 13,5 anos. Em 2020 esse valor situava-se nos 19,4 anos.
Vivemos mais tempo, o que me parece uma inquestionável boa notícia! Mas viveremos com qualidade ao longo de todo o tempo de vida que temos vindo a ganhar?
Proponho um exercício de reflexão simples: quando pensamos em pessoas mais velhas, na linguagem mais recorrente designadas como ‘pessoas idosas’, pensamos em quem? Em nós próprios/as, no presente ou no futuro, ou quase que automaticamente noutras pessoas? E que imagens mentais nos surgem imediatamente quando pensamos em ‘pessoas idosas’? Se pedir para pensar em desafios que enfrentam, de quais se lembra imediatamente?
Vivemos mais tempo, o que me parece uma inquestionável boa notícia! Mas viveremos com qualidade ao longo de todo o tempo de vida que temos vindo a ganhar?
Agora façamos um exercício diferente: pense em pessoas do seu círculo relacional que têm 65 anos ou mais (é discutível esta referência etária, mas uso-a para manter a referência dos dados estatísticos acima apresentados). Correspondem à imagem que lhe surgiu no exercício anterior? Assumindo que identificou várias pessoas (posso dar uma pequena ajuda: o Papa Francisco – 85 anos, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa – 73 anos, a atriz Simone de Oliveira – 84 anos, a cantora Tina Turner – 82 anos, o ator Ruy de Carvalho – 95 anos, …), o que encontra em comum entre as pessoas que identificou?
Penso que a esta altura já será evidente onde quero chegar: as pessoas com mais de 65 anos constituem um grupo diverso, com modos e condições de vida muito distintos entre si e com percursos de vida inevitavelmente singulares, que têm impacto na forma como vivem esta etapa do seu ciclo de vida. Ou seja, a vida depois dos 65 anos é, óbvia e necessariamente, uma continuidade da vida que se tinha antes, com novos desafios e com novas oportunidades, como sempre vai acontecendo ao longo do nosso percurso de vida.
Dito isto, voltamos ao exercício anterior: será que a imagem que nos ocorre imediatamente quando pensamos em ‘pessoas idosas’ é sobretudo de pessoas inativas, com mais necessidades, frágeis e doentes? E se é, porque teremos essa representação homogénea, quando percebemos tão facilmente a diversidade que caracteriza o grupo das pessoas que têm mais de 65 anos?
Vivemos e fomos educados/as numa cultura que valoriza o saudável, o belo, o rápido e a juventude e tendemos a deixar de fora das nossas representações de ‘normalidade’ as circunstâncias da vida em que não correspondemos a esta imagem. Isto tudo apesar de sabermos que ao longo de toda a nossa vida vamos lidando com diferentes desafios, que vamos mudando – física e psicologicamente –, e que as nossas prioridades também se vão alterando. Também sabemos que essas mudanças implicam adaptação aos desafios – bons e menos bons – que a passagem do tempo nos proporciona. Não começamos a envelhecer na idade X ou Y. Este é, felizmente, um processo contínuo e demorado.
E por isso é fundamental que se caminhe no sentido de uma abordagem ao envelhecimento baseada em direitos e não em necessidades.
Contudo, persiste esta representação social das pessoas mais velhas como um grupo homogéneo, com muitas necessidades e com poucas capacidades de contribuir para a sociedade da qual fazem parte.
Esta imagem homogénea e desvalorizada é um dos fundamentos do idadismo. Este fenómeno passa pela discriminação das pessoas em função da sua idade e afeta de forma especialmente significativa as pessoas mais velhas. O idadismo pode manifestar-se em três grandes dimensões:
- enquanto estereótipo, pelos pensamentos e representações generalizadas em relação a pessoas de determinado grupo etário;
- enquanto preconceito, manifesto no que se sente em relação a um determinado grupo de pessoas, como sentimentos de pena ou de repulsa, por exemplo;
- e discriminação, materializada em ações e comportamentos, que podem ir da ajuda excessiva e não solicitada ao abandono e maus-tratos.
Este fenómeno é tão expressivo e tem tanto impacto na vida das pessoas, que a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou em março de 2021 um “Relatório Global sobre idadismo”[4], no qual explicou o fenómeno, a sua prevalência, formas como se manifesta e estratégias para o combater. Neste relatório a OMS evidenciou que este é um fenómeno que está entranhado nas nossas sociedades e que pode acontecer de forma consciente, explícita ou inconsciente e implícita. Se estivermos atentos/as, encontramos expressões de idadismo:
- a nível institucional, quando a idade inibe o acesso a determinado direito, bem ou serviço;
- ao nível interpessoal, quando as pessoas são tratadas por outras de forma diferente apenas por causa da sua idade;
- e autodirigido, ou seja, quando as próprias pessoas, por causa da sua idade, consideram que não é adequado fazer, pensar ou desejar algo.
Reforço: viver mais tempo é uma boa notícia! Mas é um problema viver sem que os nossos direitos sejam garantidos e salvaguardados, sempre, em qualquer etapa da nossa vida, e na velhice também. E por isso é fundamental que se caminhe no sentido de uma abordagem ao envelhecimento baseada em direitos e não em necessidades. Os direitos humanos não têm limite de idade e por isso nenhum direito humano fundamental pode ser desconsiderado ao longo de todo o nosso percurso de vida.
Assente neste pressuposto tem vindo a ser discutida pelo Grupo Aberto das Nações Unidas sobre Envelhecimento[5], a criação de uma Convenção dos Direitos das Pessoas mais velhas. Esta proposta assenta numa perspetiva de direitos, sem se ignorar os desafios que marcam o envelhecimento, tanto para cada um/a de nós que envelhece, como para as comunidades em que envelhecemos. É fundamental que os contextos em que vivemos sejam cada vez mais ‘amigáveis’ para todas as pessoas e que tenham condições para que possamos viver com dignidade e qualidade de vida, hoje e no futuro. Porque sim, envelhecer é o futuro para todos/as nós! Por tudo isto, diria que é boa ideia ter esta realidade presente no que vamos construindo no nosso dia-a-dia, individualmente e enquanto membros das nossas comunidades, do nosso país e do mundo… para os outros/as e para nós também.
Fotografia: Anthony Metcalfe – Unsplash
[1] “Número médio de anos que uma pessoa à nascença pode esperar viver, mantendo-se as taxas de mortalidade por idades observadas no momento de referência. (metainformação – INE)” – Pordata (2022)
[2] Pordata – https://www.pordata.pt/Portugal/Esperan%c3%a7a+de+vida+%c3%a0+nascen%c3%a7a+total+e+por+sexo+(base+tri%c3%a9nio+a+partir+de+2001)-418 (consultado em julho de 2022).
[3] “Número médio de anos que um indivíduo, ao atingir os 65 anos, pode esperar ainda viver, se submetido, até ao final da sua vida, às taxas de mortalidade observadas no momento de referência. (metainformação – Eurostat)”
[4] Pode aceder ao Resumo executivo do Relatório Global sobre Idadismo em português, aqui: https://www.who.int/pt/publications/i/item/9789240020504
[5] Para mais informações consultar: https://social.un.org/ageing-working-group/
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.