Em 1539, Dom João III escrevia ao seu embaixador em Roma, pedindo-lhe que trouxesse para Portugal certos padres muito recomendados. A opinião acerca dos padres provinha dos intelectuais que o monarca mantinha como seus ‘avançados’ em Paris, para trazerem a Portugal as luzes do Humanismo: Eles sam todos sacerdotes e de muito exempro e letrados e non demandam nada, escrevia Diogo de Gouveia ao rei. E por isso o rei os chamava. Estava disposto a trazer ao reino todos os da Companhia, ainda que lhe custasse parte da sua fazenda.
O embaixador não teve dificuldade em obter a autorização do Papa para a vinda dos jesuítas. Em 10 de Março de 1540, comunicava o resultado das suas diligências; e cinco dias depois já estava a caminho de Portugal, na companhia dos dois jesuítas.
D. João III, primeiro monarca fundador de um Colégio de jesuítas
Portugal teve um papel fundamental na primeira atividade, quer missionária quer docente, da Companhia de Jesus. A ação do rei e a do seu embaixador junto da Santa Sé influenciou decisivamente a feição da Companhia de Jesus, agindo sobre o destino incerto dos primeiros membros e acabando por dar à História um rumo inesperado. Atento aos sinais dos tempos, o monarca soube ver naqueles padres letrados uma oportunidade. Impedidos de partirem para a Terra Santa e disponíveis para aquilo que o Papa quisesse confiar-lhes, o rei pôde desviá-los daquela que era a trajetória inicial e trazê-los a Portugal e à Europa, à Índia, ao Japão, à China e ao Brasil.
Isso deveu-se essencialmente a duas razões: a primeira era a determinação de D. João III em enviar missionários para as novas terras achadas. A segunda prendia-se com as suas preocupações literárias na política cultural do reino.
Cedo a corte começou a sonhar com o futuro daqueles sacerdotes. Eram homens cultos e de vida exemplar; nada pediam em troca; e, movidos pelo simples desejo de evangelizar, ensinavam as letras e a virtude. E assim, à medida que crescia a afeição por eles, começavam a crescer também os obstáculos para a partida. Afinal parecia a todos que eles seriam mais úteis no reino do que na Índia, de tal modo que o rei decidiu não os deixar partir. Antes queria que eles fundassem um Colégio junto da Universidade.
Inconformados, porém, com os entraves que os afastavam da Índia, pois para isso tinham deixado Roma, concordaram noutra solução: Xavier partia para a Índia e Simão Rodrigues ficava em Portugal, para dar início ao plano fundador do rei. E foi assim que em 1541-42 D. João III se tornou o primeiro monarca fundador de um Colégio para jesuítas. Nasciam em Portugal, porventura, os contratos de associação avant la lettre. Foi em Coimbra, e a Escola tomou o nome de Colégio de Jesus. Ainda lá está de pedra e cal o edifício; o património imaterial que nos deixou, esse, veremos …
A primeira rede escolar de ensino público, universal, gratuito
Aos colégios para jesuítas sucederam os colégios para leigos e religiosos, em Lisboa, Évora, Coimbra, Braga, Bragança, Beja, Campolide, Faro, Portalegre, Santarém, Setúbal e nas ilhas, Funchal, Ponta Delgada, Angra e Faial. Todos constituíam escolas de ensino público e gratuito, que assim queria o rei, com alunos internos e externos que apenas pagavam o seu sustento, não o ensino. Esse, era custeado pelas rendas e fazendas com que os colégios eram dotados.
A atividade escolar da Companhia de Jesus foi assim a resposta mais ampla à explosão de procura literária desencadeada pela descoberta da imprensa. Muito além das fronteiras europeias, numa extensão sem precedentes, a Companhia criou a primeira rede escolar de ensino público, que podemos considerar universal e gratuita, sustentada por um regime de estudos de aplicação universal cuidadosamente elaborado, a Ratio Studiorum, que educou a Europa moderna e instituiu nela os estudos secundários, simultaneamente humanísticos e filosófico-científicos.
É curta, porém, a memória dos homens. Em 1759, os Jesuítas foram expulsos pelo então Conde de Oeiras. O país desmantelava uma rede escolar que ensinava cerca de 20.000 alunos. 150 anos foram precisos para recuperar apenas uma parte desse vazio intelectual.
Primeiro imploramos, prometemos, damos a fazenda e o reino para que façam o favor de vir e de abrir escolas e ensinar – pois que é de graça! Depois, crescemos, já não precisamos… Mas se tiverem algumas escolas residuais (colégios com contrato de associação), não parece mal… Até que, por fim, fazemos o que se faz com a pastilha elástica: jogamos fora. E descartamos do ensino público os homens que inventaram o ensino público.
Porquê? Alegadamente por “razões de Estado”: porque o Estado precisou de recuperar alunos para manter o excesso de escolas que construiu. – Mas o Estado existe ao serviço da sociedade, ou a sociedade existe ao serviço do Estado? – Depende, diríamos. Neste caso, esteve, com toda a parcialidade, ao serviço da corporação dos professores do Estado, que assim sobrevivem algum tempo ao inverno demográfico. Mas não ao serviço da educação, para quem a diversidade é a alavanca da qualidade.
Escola pública ou escola do estado?
Vivemos, portanto, um momento histórico que se repete: para os colégios da Companhia de Jesus em Portugal, este foi o último ano em que puderam participar no ensino público. O Estado denunciou, por despacho, os contratos que o próprio Estado celebrara. Doravante, no nosso país, como em qualquer realidade política totalitária, escola pública tornou-se o mesmo que escola do Estado. É o Estado que determina a escola – não vão os pais querer um projeto educativo diferente do seu, pois o Estado é que sabe educar os seus cidadãos…
Para o poder instituído, escola que não seja do Estado é necessariamente escola suspeita. Se assim não fosse, ao reconhecer o excesso de oferta formativa, o Estado, que deve ser o garante da qualidade da educação e não o seu dono, abriria inquéritos à avaliação de cada escola, a fim de preservar as melhores e de encerrar as inferiores. Mas preferiu a cegueira de não o fazer – como outrora o Conde de Oeiras.
De nada valeram as manifestações de milhares de pessoas pela rua, os pareceres jurídicos negativos, as situações de manifesta injustiça social criadas para professores e alunos, ou os desequilíbrios hoje visíveis nas escolas estatais onde os alunos foram amontoados. Aliás, a opinião pública resignou-se silenciosamente, até porque no debate público, a questão foi erradamente equacionada em termos de escola pública contra escola privada. Um equívoco conveniente para o poder. Quem é que deseja ser conotado com os defensores de privilégios? Quem é que não deseja que o ensino seja para todos? Como se estas escolas não estivessem a prestar um ensino público, ao alcance de todos e não apenas para “riquinhos”. Como se estas escolas não vivessem exatamente do mesmo financiamento das escolas estatais, isto é, dos impostos do cidadão.
E assim a história da democracia no nosso país vive mais uma perda. Em nome da liberdade e da igualdade, cedemos à homogeneidade do pensamento único e abrimos as portas aos cavalos de Troia da agenda internacional secularista.
Coimbra e Caldinhas: salvar património imaterial da nossa identidade
Contra todas as adversidades, porém, em Coimbra e em Santo Tirso, o que resta dos colégios dos Jesuítas e do seu património secular reorganiza-se, na certeza do muito que ainda tem para dar ao ensino e à educação. Desta vez dependerá exclusivamente da inteligência e da vontade dos cidadãos que tiverem a ousadia de pagar duplamente. Pagam a educação que desejam para os seus filhos, mais o serviço nacional de educação.
Cabe, portanto, às muitas gerações de famílias que nas últimas décadas beneficiaram da ação pedagógica e pastoral dos Jesuítas (em colégios, campos de férias, centros universitários e casas de espiritualidade) serem agora as parceiras ativas destes projetos – que constituem há mais de 450 anos, património imaterial da nossa identidade.
Apesar do Estado, poderá o país continuar a contar com o ensino criado por esses sacerdotes (…) de muito exempro e letrados [que] non demandam nada?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.