Descrédito da transmissão da cultura
O discurso pedagógico dos nossos dias exalta o protagonismo do aluno. Um professor com “atitude magistral” põe limites, diz-se, à espontaneidade do estudante e impede a sua criatividade. Na escola do futuro há que retirar a palavra ao professor e dá-la ao aluno. Para quê ler livros? Cada aluno é um potencial artista, intelectual, político, cientista, economista… e deve descobri-lo pelos seus próprios meios. Para quê sobrecarregar a memória, se está tudo no Google?… Os que somos professores sabemos que magistral (do latim magister, ‘professor’, ‘mestre’) é algo que está colado a ‘autoridade’. Destoa das qualidades do professor ideal. A aula magistral despreza o aluno e não o deixa acreditar nas suas próprias capacidades. Como se o aluno não tivesse nada para receber; como se autoridade se opusesse a liberdade.
Mais ainda, ouvimos dizer que a escola é o lugar da reprodução social; e que transmitir conhecimentos é alinhar com o sistema, legitimar desigualdades e assegurar hegemonias sociais. Ou seja, possuir convicções firmes e pretender transmiti-las é visto como forma de opressão que prejudica a aprendizagem (a menos que as convicções não provenham da ciência mas antes de ideologias indiscutíveis, que vieram substituir o dogma).
Num livro de 1964 que se tornou um clássico da sociologia da educação e que ainda hoje faz escola (Os Herdeiros: Os Estudantes e a Cultura, 1964), P. Bourdieu e J. C. Passeron pretenderam demonstrar a relação estreita entre desigualdade social e desigualdade escolar. Na origem das desigualdades estava a herança cultural. A primeira consequência dessa acusação foi o descrédito da transmissão da cultura na escola. Para estes sociólogos, transmitir a cultura era desenvolver o capital ao serviço da divisão de classes; era fazer dela um instrumento do sistema e das suas injustiças. Herdeiros eram precisamente todos aqueles que pactuavam com o sistema e perpetuavam o mal.
A rutura com a tradição
P. Bourdieu não foi um pensador isolado. A sua doutrina esteve por detrás da revolta estudantil de Maio de 68, que incidia precisamente na crítica destrutiva contra a educação, a cultura e a própria ideia de autoridade. Assim se gerou uma onda de mudanças com consequências sobretudo no modo de entender a educação. Cabelos compridos, mini-saias, libertação sexual e idolatria de tudo o que fosse “juvenil” eram apenas a espuma de uma realidade mais profunda e de efeitos muito mais complexos: para os heróis de 68, a maior conquista foi o descrédito da autoridade e a rutura com a tradição, que embaraça o génio de cada um.
Aparentemente vivemos numa sociedade auto-referenciada, que julga saber muito por dominar os meios de informação, mas desconsidera o passado e julga que tudo começou agora. Não tem lugar para a memória nem para o Outro, ocupada que está com a sua própria satisfação. Prefere as selfies à foto de família, em que as gerações se encontram. A autorreferencialidade não só desvaneceu o sentido do devir geracional, como também desagregou os laços sociais que uniam os indivíduos às suas redes naturais de pertença. Anulou o seu sentido de responsabilidade mútua. E assim os herdeiros de outrora deram lugar a deserdados solitários.
Deitar fora o bebé com a água do banho
Marcelo López Cambronero y Feliciana Merino, Mayo del 68: cúentame cómo te ha ido. Conversaciones (Madrid, Encuentro, 2018) abordam a revolução de 68 a partir de 10 entrevistas a outros tanto protagonistas daqueles acontecimentos. Diferentes pontos de vista chegam a resultados comuns: os heróis de 68 buscavam fantasias utópicas para denunciar o sistema asfixiante em que estavam enclausurados. Mas acabaram por “deitar fora o bebé com a água do banho”. É certo que venceram o autoritarismo, mas à custa de derrubarem a autoridade; com o deslumbramento da liberdade derrubaram a noção de compromisso, e com o fim das hierarquias derrubaram a capacidade de organização. Sem todas aquelas barreiras, veio o capitalismo mais consumista e tomou o poder. Cada indivíduo é agora obrigado a consumir e, manipulado pela publicidade, procurar de prazer em prazer uma satisfação inalcançável, sem encontrar mais do que “pequenos chutes de satisfação temporária”.
Até que venham novos autoritarismos e tomem conta da História – e eles já aí estão, ora naqueles que não sabem perder debates, ora nos inquisidores de livros infantis e de campanhas publicitárias…
Herdeiros ou deserdados? A diferença entre o professor e o Google
Educar significa etimologicamente guiar, conduzir a uma meta. Que resta da educação quando o educador já não guia? E se o educador é guia, como pode ignorar o Norte e o Sul, neste mundo supercomplexo que é o nosso? O que é um educador destituído de autoridade? Ou o que é um pai que se limita a ser companheiro do filho? O que é um filho privado do património dos pais?
Filhos sem património são filhos deserdados. Gerações privadas da cultura que as precedeu são gerações órfãs. Assim, se a escola de Bourdieu se limitava a produzir ‘herdeiros’, o que fazem hoje as nossas escolas? A escola que resiste à transmissão da cultura mais não faz do que produzir gerações de deserdados.
François-Xavier Bellamy escreveu sobre essa geração de deserdados (Les Déshérités ou l’Urgence de transmettre, Plon, 2014), num livro em que convida a recuperar a relação entre as gerações[1].
Os deserdados são a geração de jovens que não lê, que tem medo dos compromissos, fortemente individualista, que se deixa manipular facilmente, alimentada apenas de referentes efémeros e atraída por escassos slogans que preenchem de repente o desconforto do seu próprio vazio.
Transmitir cultura não é pôr os filhos ou os alunos a reproduzirem uma cassete dos pais ou dos educadores. É educar de modo a que os filhos possam ser livres, dando-lhes o melhor que possuímos da nossa cultura e do património que herdámos e recriámos. Um aluno não é mais livre sem professor; pelo contrário, sujeita-se a ser usado. O professor dar-lhe-á as condições para que possa fazer escolhas mais livres na sua própria busca da verdade – sem se deixar instrumentalizar por interesses. Essa é a diferença entre o professor e o Google.
Para quê estudar história, literatura, geografia, filosofia se está tudo no Google? Memorizar, em tempos de Google?!
Em português diz-se “decorar”: guardar no coração. A memória do PC quanto mais se enche menos funciona. Não é assim a nossa memória: quanto mais memorizamos melhor aprendemos. Por que a subestimamos tanto? A cultura não é um armazém de bagagem indistinta que levamos numa mala atafulhada. Não é algo exterior que se leva na mão; faz parte de nós, enriquece-nos, dá-nos ser. Não é um capital que se perde à medida que o repartimos. Pelo contrário, é algo vivo, que aumenta quando se transmite. A tecnologia armazena a cultura, mas não possui a chave do seu próprio armazém. Para aceder à chave da transmissão é preciso um mediador, um mestre, que seja capaz de informar e também de formar.
Este encontro de gerações nunca foi fácil e hoje também não o é. É possível que hoje o professor veja o seu saber imediatamente contestado em sala de aula por uma pesquisa realizada no motor de busca de um smartphone. Mas cabe-lhe a complexa missão de ensinar a distinguir o trigo do joio, no mundo da informação. Do professor espera-se mais do que informação; espera-se formação. Espera-se que elabore a informação e eduque na busca da verdade, da justiça e do bem, no respeito, na ordem e no diálogo. Espera-se que, em lugar do indivíduo (o consumidor / produtor) saiba valorizar a pessoa que se relaciona, que ama, chora e perdoa. Para isso tem de recuperar a autoridade que a sociedade muitas vezes lhe nega.
Anões aos ombros de gigantes
Essa autoridade chega-lhe de todos quantos o precederam. A metáfora de Bernardo de Chartres continua poderosa: se hoje conseguimos ver mais longe do que no passado, não é por sermos mais altos, ou por termos uma visão de maior alcance. É por termos subido aos ombros dos gigantes. Se vemos mais do que Aristóteles e Descartes, é graças a eles.
Vamos deserdar os nossos filhos? Vamos despojá-los das alturas de onde se vê?
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[1] Lutando contra a transmissão e a herança, escreve, criámos uma geração muito frágil, com acesso à internet mas de alma vazia. E a alma vazia deixa-se encher por todo o tipo de extremismos perigosos, a começar pelo jihadismo. Sim, é verdade que a história conheceu muitos criminosos cheios de cultura. Mas a falta de cultura está a gerar desumanidade. Bellamy examina alguns casos de terroristas da yihad que foram educados em França (como recentemente em Liège, na Bélgica). Não são nunca muçulmanos de grande cultura corânica, enraizados numa tradição. São europeus de fundo nihilista, seduzidos por slogans islâmicos
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.