Enquanto o comboio se afasta

O homem deu-lhe umas aulas e, aos poucos, o rapaz foi melhorando. Ainda não tocava nada como o professor mas estava cada vez mais perto de encontrar a sua música.

Há umas semanas, estava muito bem sentado a martelar palavras quando a campainha tocou. Com a cabeça noutro lado, distraído dos meus gestos, levantei-me para ir à porta. E não é que, ao abri-la, me vi perante uma ressurreição? Não é brincadeira, trocadilho nenhum, é a mais pura das verdades. Mas, antes de ir por aí, permitam-me que conte uma história.

Era uma vez um rapaz que gostava de se juntar com os amigos para cantar umas coisas. Não sabia tocar música propriamente, mas divertia-se com outros da sua idade tentando aproximar-se de algumas canções mais ou menos folclóricas, mais ou menos populares. Um dia, estava a passar por uns campos de ténis e parou. A um canto, um homem tocava guitarra; um estrangeiro, rodeado por algumas pessoas, fazendo música como um deus. O rapaz nem queria acreditar. Ficou também a ouvi-lo, quietíssimo, a voar por dentro. No final, aproximou-se e pediu-lhe se o ensinava a tocar daquela maneira. Combinaram os dias, as horas, o pagamento. O homem deu-lhe umas aulas e, aos poucos, o rapaz foi melhorando. Ainda não tocava nada como o professor mas estava cada vez mais perto de encontrar a sua música. E, um dia, o homem não apareceu. Não veio dar a aula combinada. O rapaz ligou a tentar saber dele e descobriu que se tinha suicidado. Aqui a história tem de encontrar outra linguagem: de repente, tudo se torna interior e insondável. Que silêncio terá então sentido o rapaz? Que sombra terá nascido junto aos campos de ténis? Um músico sem nome, um deus estrangeiro na vida — para sempre, para nunca mais. Muitos anos depois, quando já era um compositor-cantor famoso, o velho rapaz confessou ao mundo que os seis acordes aprendidos com esse jovem mestre eram a base de toda a sua música. Quem é que ainda não descobriu como se chama esse rapaz? Falo de Leonard Cohen, claro. (E roubo este truque, de contar a história de um grande sem lhe dar o nome, a John Berger, que escreveu assim um belo ensaio sobre Charles Chaplin. É fácil simplificarmos, retrospetivamente, as pessoas famosas, como se estas tivessem caído de pára-quedas na sua vida. Se não as colarmos logo ao nome-marca que carregam, talvez consigamos olhá-las ainda com olhos limpos.)

Que silêncio terá então sentido o rapaz? Que sombra terá nascido junto aos campos de ténis? Um músico sem nome, um deus estrangeiro na vida — para sempre, para nunca mais.

Mas, regressando à campainha do começo: abro a porta e o carteiro entrega-me “The Flame”, de Leonard Cohen, morto em novembro de 2016. De repente, ali, uma ressurreição. A voz do poeta e cantor — tempos houve em que as duas palavras eram sinónimas — viva nas minhas mãos, vivíssima como uma árvore ou um peixe. “The Flame” é uma coleção de poemas, letras de canções, notas soltas. Versos que falam de desejo, Deus ou a sua ausência, solidão, encontros, despedidas, o espírito do tempo, a passagem do tempo, a morte, etc., no conhecido tom coheniano em que tudo é verdadeiro e irónico, triste e cómico, universal e irrepetível. Talvez estas quatro linhas mal recortadas e mal traduzidas possam servir de exemplo: “e ninguém te culpa/ enquanto o comboio se afasta/ com a sua carga de neve/ para aqueles pisa-papéis de vidro”.

“Enquanto o comboio se afasta”, o mundo encharcou-se de música. De tal maneira que já nem damos conta. Música nos automóveis, nos elevadores, nas salas de espera, em espaços públicos, até ao ar livre — música por todo o lado. Música-ruído, música-palha… “The Flame” é um bom remédio para isso. Estas canções, sim, ensinam-nos o silêncio. Escritas ou cantadas, as canções de Leonard Cohen são um antídoto para a cacofonia quotidiana que nos retira a liberdade simples de ouvir e escutar.

No discurso de aceitação do Prémio Príncipe das Astúrias — onde nos ofereceu a história do professor espanhol e dos seis acordes mágicos —, Cohen falou também de Lorca como uma das suas referências. Disse que a obra de Federico García Lorca o guiou na busca da sua voz e que lhe ensinou que um lamento não deve ser descuidado. Por trás do silêncio que as suas canções constroem — um silêncio raro, capaz de abrir clareiras no mundo fala-barato dos nossos sítios e sites —, está esse tipo de seriedade. A seriedade de não proferir uma piada em vão, nem chorar só porque sim.

“Saudade”, diz Nick Cave, numa das conferências do disco “The Secret Life of The Love Song”. O cantautor australiano utiliza a palavra portuguesa, nessa aula, para tentar definir o coração da moderna arte lírica, digamos, e a tese que defende é a de que uma canção de amor precisa sempre de tristeza. Uma ideia estranha, à partida. Então um hino de amor não pode ser só festa e céus azuis? Mas não. E basta lermos estas canções-poemas de Cohen para nos desenganarmos. Mesmo os textos mais solares de “The Flame” evocam um longo acorde menor. A verdadeira felicidade é difícil, arriscada, e só por contraste pode ser percebida em todo o seu esplendor.

A verdadeira felicidade é difícil, arriscada, e só por contraste pode ser percebida em todo o seu esplendor.

A personagem teatral que foi a de Cohen no palco do mundo — um galã em Hydra, Grécia, um monge em Los Angeles, Califórnia — também parece ter qualquer coisa desta contradição. Algo de amor desencaixado ou, não sei, comovida alegria. (“Fiquei de fora das minhas lágrimas/ como uma estátua à chuva”, escreve neste livro o grande Leonard.) Por vezes, imagino-o como um fadista que, por acaso, nasceu no Canadá. Alguém que se mascara de “sacana preguiçoso a viver dentro de um fato” para disfarçar o pudor de cantar o que há de mais íntimo e profundo em nós. Um fadista que fala de igual para igual com os “Fados” e que, por cerimónia ou humildade, não escreve “Deus” por extenso.

“No mundo de Chaplin, o Riso é a alcunha da imortalidade”, diz John Berger em “Alguns Apontamentos Sobre a Arte de Cair” (o tal ensaio de que falei acima). No mundo de Cohen, a alcunha da imortalidade é o Silêncio. Que falta nos fazem canções assim bravas.

 

 

 

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.