Queridos amigos e amigas,
espero que me possam permitir um pouco de coloquialidade neste texto. Veio-me em mente escrevê-lo – apesar do pouco tempo que a época de exames nos deixa para respirar – ao ouvir a “confissão” de um bom amigo que, à luz dos recentes eventos nacionais, tem sentido «vergonha» de ser português. Este comentário, vindo de um homem cuja vida tem sido entrega pelo seu país, soou-me mais a angústia do que a ira. E a angústia deste meu amigo tornou-se então minha, ainda que de uma forma muito diferente.
O que é isto, amigos: que monstro marítimo ou rei mouro, que invasor espanhol ou francês, que derrota ou fatiga nos pode fazer envergonhar-nos do nosso país? Permitam o desabafo deste vosso irmão “exilado”, mas o que haverá mais belo do que Portugal? Que graça nos terá dado o Senhor, que benefício poderia dos Céus chover… que superasse o simples facto de «ser português»? Os latinos diziam sabiamente «ubi bene, ibi patria», mas o português, de entre todos os povos, pode ousar dizer «ubi patria, ibi bene».
O que é isto, amigos: que monstro marítimo ou rei mouro, que invasor espanhol ou francês, que derrota ou fatiga nos pode fazer envergonhar-nos do nosso país? Permitam o desabafo deste vosso irmão “exilado”, mas o que haverá mais belo do que Portugal?
Ao ouvir o meu amigo Jorge, veio-me imediatamente em memória a bela obra de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, por virtude de uma frase de D. Manuel Coutinho, que, ao decidir queimar o seu próprio lar por puro patriotismo, proclama: «Há-de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal». Esta declaração de amor nacional, admito, apaixona-me desde há sei-lá-quanto-tempo. E diz-nos Camões[1] de quando os portugueses partiram para descobrir o mundo:
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
A mim ocorre-me dizer, como um velho amigo de voz rouca e irónica, «e o que mudou?» – nada, não mudou nada. Mas esta minha reminiscência de Garrett portou-me imediatamente a uma outra, da mesma obra. Mais adiante na peça, é a vez de D. Maria, filha de D. Manuel, tomar a palavra, em diálogo com Frei Jorge, seu tio. Deixo aqui um excerto desta troca de palavras.
MARIA
– Coitado do povo! Que mais valem as vidas deles? Em pestes e desgraças assim, eu intendia, se governasse, que o serviço de Deus e do rei me mandavam ficar, até à última, onde a miséria fosse mais e o perigo maior, para atender com remédio e amparo aos necessitados. Pois, rei não quer dizer pai comum de todos?
JORGE
– A minha donzela Teodora! Assim é, filha, mas o mundo é doutro modo, que lhe faremos?
MARIA
– Emendá-lo.
Proponho a todos uma leitura espiritual deste pequeno diálogo. Não trago “pontos de oração”: venho sugerir que este diálogo possa servir-nos de “ponto de ação” para aquilo que vivemos hoje. Tenho ouvido alguns desabafos, quer dos que são confiados no calor de uma chamada, quer dos que se deixam no anonimato das redes sociais; e, em tantos desafogos, vejo muita ira, muita indignação. Há quem culpe o governo por não saber cuidar do povo; há quem culpe o povo por não saber cuidar do irmão. Mas lá no fundo, estou em crer, tanta raiva e revolta são máscaras de uma angústia muito parecida à do meu amigo Jorge, que não soube nem tentarei descrever.
Todos tendemos a procurar culpados: para além de ser uma necessidade pragmática, é um defeito que já vem lá do Adão e Eva. Mas, se não o pudermos deixar de fazer – quer porque eu esteja enganado e a revolta não seja uma máscara, quer porque talvez seja uma máscara demasiado embutida para tirar sem nos deformar o rosto –, podemos sempre tentar ir mais além. A pequena Maria sabia muito bem “o que devia ser feito”: infelizmente, o mundo é de outra forma. «O que lhe faremos»? A audácia da bambina leva o tio a comentar com a mãe, e a mãe a concordar inteiramente: «Sabeis que mais? Tenho medo desta criança».
«Emendar o mundo» não é ação demasiado grande para ninguém. Há quem o faça em Bruxelas, e há até hoje quem o faça, muito mais heroicamente, nos hospitais. Há também quem, a nosso juízo, não o faça, muito embora devesse; e há quem nunca tenha pensado – ou pelo menos havia até março do ano passado – que o mundo não precisa de emenda. Mas é aqui que entra a sabedoria de S. Inácio de Loiola, que tinha poucos cabelos mas muitos neurónios: «Que fiz, que faço… que farei por Cristo»[2]? Reparem como o discurso deu um salto; vejam como já não se fala de “outros”, próximos ou distantes, culpados ou vítimas, figuras públicas ou formas anónimas. Tudo o que se fala é daquele “eu”, daquela alma e carne que acompanham a nossa sombra.
Este tempo, de facto, trouxe-nos a nossa própria finitude para diante dos olhos. Sejamos honestos e digamos: o que é que levaremos deste mundo, por muito grande que seja o caixão, senão o amor com que nos sorriram, e a beleza com que chamaram pelo nome?
A pequena Maria – com lágrimas do leitor e do espectador – parece morrer antes de poder emendar o mundo. «Parece», mas, sabemos bem, pelo menos o coração de D. João foi emendado. Seja como for, meus amigos, que até aqui tiveram a paciência de me ler… seja como for, para nós não é demasiado tarde. «Repara que coloco hoje diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal»[3]. Somos livres, companheiros, de nos fecharmos na angústia, de içar a bandeira a meia-haste, de reclamar o direito quebrado, e de chorar tantos “se’s”. Mas seria uma pena – mais triste do que algum dia se cantou no Fado – que escolhêssemos construir a nossa tenda no lamento de Mário de Sá-Carneiro[4]:
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…
Convido, com muita humildade e ousadia, cada um a tomar a missão comum de emendar o mundo. Tudo conta: cada pequeno gesto, palavra ou sorriso. Sabemos hoje mais do que nunca, talvez, que é verdadeira aquela sabedoria espiritual que nos diz que o essencial não se mede em tamanho ou tempo, mas no amor que se põe em cada coisa. Este tempo, de facto, trouxe-nos a nossa própria finitude para diante dos olhos. Sejamos honestos e digamos: o que é que levaremos deste mundo, por muito grande que seja o caixão, senão o amor com que nos sorriram, e a beleza com que chamaram pelo nome?
[1] Os Lusíadas, I.
[2] Cf. Exercícios Espirituais, 53.
[3] Deuteronómio 30, 15.
[4] Poema Quasi.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.