Educar para um novo paradigma

Criticam-se as novas gerações por falta de motivação e ausência de espírito de sacrifício. Mas motivação para quê? Sacrifício, com que propósito? O futuro incerto gerou um buraco negro de sentido. É tempo de o preenchermos com aquilo que pode realmente fazer a diferença na vida de cada um, e depois no futuro da Humanidade, do qual somos todos co-responsáveis.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, escreveu Camões, há quase cinco séculos. Desconhecendo como as questões da Vontade (do Instinto à Motivação) viriam a ser tão estudadas por diversas áreas que surgiram entretanto, procurando tratar de forma científica aquilo que a poesia há tanto traduzia em palavras. Não sou psicóloga, neurocientista ou cientista social – estarei sempre mais do lado da poesia – mas sou mãe por vontade e com vontade de entender o que move os meus filhos, num tempo em que tanto daquilo que, durante tantos anos moveu tantas gerações, deixou de ter razão de ser.

Abraham Maslow criou nos anos 50 uma Pirâmide de Necessidades segundo a qual se movia a ação humana. O primeiro nível de motivação, na base da pirâmide, seria o das necessidades fisiológicas: comida, água, ar respirável… Satisfeitas essas necessidades, surgiria um outro nível de motivação mais ligado à estabilidade e segurança, outro ligado aos relacionamentos – amizade, amor, família – e depois disso as questões do desempenho – sentirmos que estamos a dar o nosso melhor e que os outros o reconhecem. Por último, no topo da pirâmide, surge a auto-realização, que tem a ver com aquilo que somos, verdadeiramente, e temos para dar. A teoria não é consensual, mas olhando para a História do país, ou mesmo para a História da Humanidade – e aconselho, nessa linha, os livros do professor Yuval Noah Harari, “Homo Sapiens” e “Homo Deus” – verificamos como as grandes preocupações dos nossos antepassados foram, em primeiro lugar, de ordem fisiológica, e depois ligadas à estabilidade e segurança, garantindo a sobrevivência dos próprios e da comunidade. Nas zonas onde foram ultrapassadas essas necessidades, assistimos ao surgimento de gerações que se preocupavam sobretudo com as questões do emprego e do reconhecimento dos pares, ligadas também à melhoria das condições de vida. Foi a geração de muitos dos nossos avós ou pais, que influenciou a minha. Entrar na faculdade, de preferência num curso com uma boa saída profissional, e conseguir um bom emprego – que era sinónimo de estabilidade, preferencialmente com o reconhecimento dos pares – era aquilo que nos era incutido como passaporte para a felicidade.

A crise destruiu os sonhos de muitos adultos, outros chegaram aos 40, 50, 60 anos exaustos, deprimidos ou sem relacionamentos de qualidade. E o sacrifício pela estabilidade acabou por ser posto em causa pelas novas gerações

Sara Rodi

A crise destruiu os sonhos de muitos adultos, outros chegaram aos 40, 50, 60 anos exaustos, deprimidos ou sem relacionamentos de qualidade. E o sacrifício pela estabilidade acabou por ser posto em causa pelas novas gerações: “Será que é isto o que eu quero para mim?” Nessa descrença germinou um vazio de sentido, que se torna num verdadeiro buraco negro quando olhamos para a frente e não sabemos que espécie de futuro será o da Humanidade… Sabemos que a inteligência artificial vai substituir milhares, milhões de empregos por algoritmos e robots, e já se fala numa possível “classe inútil” que ninguém sabe o que fará ou como se comportará. A ideia de um Rendimento Básico Incondicional, garantido a todos os cidadãos, já foi testado em países como a Finlândia ou a Holanda. As alterações climáticas parecem irreversíveis e ninguém sabe que catástrofes nos esperam. Ao mesmo tempo, há planos para voltarmos à Lua e, a partir dela, chegar mais facilmente a Marte, para onde se desenham colónias e novas formas de organização civilizacional. O que será o futuro? Estamos a educar os nossos filhos para quê, exatamente? A pedir-lhes que se sacrifiquem, com que razão e em que direção? E, no entanto, num mundo tão cheio de desafios, podemos vir a precisar de uma geração capaz de se sacrificar, e muito, por escolhas sensatas e mudanças urgentes… (a menos que queiramos correr o risco de ver a Humanidade retroceder à luta pelas necessidades mais básicas, de sobrevivência).

O que será o futuro? Estamos a educar os nossos filhos para quê, exatamente? A pedir-lhes que se sacrifiquem, com que razão e em que direção?

Sara Rodi

Sou solidária com aqueles que se queixam das gerações mais novas, que acusam de egocentrismo e de apenas conseguirem sacrificar-se no ginásio ou à mesa, a comer coisas esquisitas para conseguir uma melhor aparência para as fotos do Instagram. Ou que se sacrificam nos bens que consomem, mas apenas para poderem aceder a outros. Sou solidária porque também não creio que seja este tipo de sacrifícios aquele que torna as pessoas felizes, pelo menos não de forma plena ou duradoura. São mais uma espécie de paliativo para a ausência de sentido que se gerou, não a solução para o problema que, a meu ver, está mais na resposta à pergunta: “Com aquilo que sou, o que tenho para dar? O que posso melhorar? Transformar? Criar? Revolucionar? Para mim e para todos aqueles que me rodeiam?”

“Com aquilo que sou, o que tenho para dar? O que posso melhorar? Transformar? Criar? Revolucionar? Para mim e para todos aqueles que me rodeiam?”

Sara Rodi

A verdade é que não vamos ajudar as novas gerações a encontrar respostas para estas perguntas – a buscar um sentido para a sua vida – quando continuamos a exigir-lhes que tenham boas notas para serem os melhores da turma ou irem para o quadro de honra, sem sequer lhes explicarmos em que medida tudo aquilo que aprendem pode vir a ser-lhes útil no futuro, seja ele qual for. A desejar que eles entrem num bom curso que lhes garanta um bom emprego e o dinheiro suficiente para comprarem uma casa, um carro e um telemóvel topo de gama, sem lhes explicarmos que o sucesso profissional advém, sobretudo, do empenho que colocamos a fazer aquilo de que gostamos, e que, se é verdade que os bens materiais podem tornar uma vida mais confortável, não são sinónimo de auto-realização. Quando sonhamos profissões para eles, mas não os ensinamos a conhecer os seus talentos, as suas maiores forças e fragilidades, e não lhes damos autonomia para fazerem as suas próprias escolhas, alicerçadas nos valores que lhes transmitimos. Quando, tantas vezes, nem lhes transmitimos valores alguns, nós próprios enredados nos nossos stresses laborais, na nossa forma física e nas nossas redes sociais. Quando não somos, nós próprios, o melhor exemplo de auto-conhecimento, empatia, entreajuda, entrega e espírito de sacrifício. Quando nós próprios também não sabemos o que temos para dar e/ou não o colocamos ao serviço de um futuro melhor…

O mundo está em mudança e, com ele, um novo paradigma que é preciso desenhar. Para isso, as novas gerações precisam de novas diretrizes, outros estímulos, mais coerência e mais verdade. Precisam de uma outra Educação, na escola e em casa.

Sara Rodi

O mundo está em mudança e, com ele, um novo paradigma que é preciso desenhar. Para isso, as novas gerações precisam de novas diretrizes, outros estímulos, mais coerência e mais verdade. Precisam de uma outra Educação, na escola e em casa. Precisam de professores e familiares que busquem, eles próprios, subir um degrau na sua pirâmide e procurem a sua auto-realização, por si e para os outros. Sem sacrifícios vazios de sentido. Numa frase de Charles Du Bois: “estar pronto para, a qualquer momento, sacrificar o que somos pelo que poderíamos vir a ser.” Difícil? Claro que sim… Mas o novo paradigma é exigente. Exige que cada um faça o seu trabalho de casa interior, e depois arregace as mangas para o pôr ao serviço dos outros. Quando isso for uma realidade, teremos finalmente novas gerações preparadas para qualquer futuro, com mais ou menos robots, aqui ou em Marte. Melhor ainda, novas gerações preparadas para construir qualquer futuro, em prol de toda a Humanidade.

Utopia? Depende de cada um de nós…

(e, faltando-nos as forças, teremos sempre a poesia, aqui nas palavras de António Machado: “Há algum tempo neste lugar/ onde hoje os bosques se vestem de espinhos/ ouviu-se a voz de um poeta gritar:/ “Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar…”)

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.