“Deixem-me que vos conte: ao retroceder nas minhas memórias para buscar a mais antiga da minha vida, vejo-me a mim mesmo — com dois, três anos — correndo pela velha varanda aberta da minha casa de criança. Era uma varanda ensolarada, voltada para o pátio das minhas brincadeiras infantis. E vejo-me a atravessá-la a correr, arrastando um cobertor, no qual tropeçava e sobre o qual caía. “Manta, mamã, manta”, contam-me que eu dizia. É que a minha mãe estava doente e o menino que eu era pensava que todas as doenças se curavam aconchegando uma manta quente ao doente. E lá estava eu, quase sem saber andar, arrastando aquele cobertor absolutamente inútil e desnecessário, mas pressentindo que a ajuda que prestamos ao próximo não vale tanto pela utilidade que encerra, mas pelo afeto que pomos ao fazê-la. Pergunto-me, cinquenta anos depois, se todo o nosso ofício como humanidade não será, justamente, o de nos cobrirmos uns aos outros, protegendo-nos contra o frio do tempo.” (nota 1)
Ressoa em mim esta memória de infância de Martín Descalzo.
Estamos a viver um momento histórico, como há décadas não acontecia. O mundo está virado do avesso, ouvimos dizer um pouco por todo o lado.
Num tempo de tanta desorientação humana – política, social, económica, cultural – esta criança traz-nos a sabedoria do olhar.
A intuição deste menino-bebé nasce de um olhar que lhe vem do coração. Este pequeno ser já conhece a essência do que nos torna pessoas: a nossa identidade humana revela-se na relação com o outro, para o outro, cuidando o outro, com tudo o que somos, tudo o que em nós é promessa e fragilidade, tropeçando nas nossas mantas, mas correndo pelas varandas ensolaradas com a liberdade, a frescura e a transparência de uma criança.
Experimento profundamente o poder do olhar que dá vida, que acolhe, que é colo, mas também trampolim para passos maiores, para gestos e compromissos mais ousados. O olhar do coração. E porque o experimento, vejo a necessidade de o multiplicar.
É um olhar sem véu – nem no meu nem no rosto de quem me olha – um olhar que rompe a indiferença, um olhar que me põe a caminho.
É um atrevimento. É uma urgência. E educa-se.
Educar a interioridade é educar o olhar.
Um olhar que contempla, que se atravessa, que se deixa interpelar, que se comove, que se deslumbra e assombra, que reconhece na fragilidade sua e dos outros um caminho… o caminho do ser, porque somos em processo, a vida acontece-nos e nós acontecemos na vida. E acontecemos uns nos outros, na vida uns dos outros. Estaremos preparados para esse acontecer?
Um olhar que contempla, que se atravessa, que se deixa interpelar, que se comove, que se deslumbra e assombra, que reconhece na fragilidade sua e dos outros um caminho… o caminho do ser, porque somos em processo, a vida acontece-nos e nós acontecemos na vida. E acontecemos uns nos outros, na vida uns dos outros. Estaremos preparados para esse acontecer?
“É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir.” (nota 2)
É vital recuperar a capacidade de espanto e de assombro.
Descobrir que sou um presente para o mundo e que cada outro é um presente para mim, uma bênção que acolho reconhecida ou deito fora.
Numa linha crente cristã, este assombro é sagrado, termos em nós a capacidade de reconhecer a beleza à nossa volta, a capacidade de nos “espantarmos” com os outros, com a Vida, com a Criação.
Não falo da beleza da perfeição, falo de outra ordem de beleza. A beleza de que fala o Cardeal Tolentino “Somos esta coisa humana, provisória, incerta, inacabada, imperfeita. Mas somos também poeira enamorada.” Deste assombro nasce a gratidão.
Educar a interioridade é educar para a gratidão.
Reparar e agradecer as coisas belas, os gestos, as pequenas grandes coisas que enchem de sentido as nossas vidas: recordo aquele menino de sete anos que, para tentar animar a mãe, deitada num hospital, após uma tentativa de suicídio, decidiu escrever-lhe uma lista deliciosa de todas as coisas maravilhosas que havia (nota 3); a primeira coisa da sua lista era “gelado”!
E se começássemos por fazer a lista das coisas maravilhosas da nossa vida?
Precisamos de treinar o olhar e de treinadores do olhar: descobrir-me habitado, buscado, querido, amado; descobrir que me defino na relação com o outro; descobrir quem sou, descobrir que SOU, descobrir-me para MAIS.
Sou professora. Realizo-me nesta missão de ajudar a que cada um descubra a beleza que já é e a que é chamado a ser. Na expressão sábia de uma amiga espanhola, ajudar a “vertebrar personas”. Estou muitas vezes numa sala de partos, testemunho estes nascimentos do ser, frágeis, poderosos, pequenos e luminosos pedaços da Humanidade, que sou convidada a cuidar.
Convidar e conduzir à descoberta da sua terra sagrada, à descoberta de que é habitado por Alguém/Algo maior, à descoberta da sua identidade de filho muito amado e, nesse chão, tornar-se ele próprio o ator principal, a presença que fará a diferença na construção de um mundo mais digno, mais humano… mais divino.
“O que ligares na terra será ligado no céu” é uma voz que me vai moldando, em que me reconheço, mas de que nem sempre estou à altura.
Como se faz?
Ocorre-me a metáfora do leque: fechado é um pedaço de madeira muito simples, sem grande interesse ou utilidade; aberto é uma pequena obra de arte, elegante, bela, transportando em si a possibilidade de refrescar o ambiente à sua volta. E o leque abre-se desdobrando-se, revelando-se aos poucos nas suas dobras, nas suas pregas: as dobras que nos constituem, o modo como nos expressamos ou escondemos (dos outros e de nós próprios). Para que o leque se permita desdobrar, temos de o abrir com cuidado, com delicadeza, para não rasgar. Mas ele tem de ser ir desdobrando, para ser aquilo que é, no seu esplendor.
Um leque é também uma obra de arte, e muita da sua beleza está nos seus buracos, no seu rendilhado, nos vazios em que a linha não cruza!
Também a nossa vida está cheia de buracos – são as nossas limitações, as nossas imperfeições, as nossas feridas. Mas é nelas que está a oportunidade de crescer e amadurecer, reconhecendo que as minhas e as tuas imperfeições são o lugar em que nos encontramos e podemos entreajudar.
Por onde começar? Haverá uma ordem?
O trabalho de autoconhecimento é central: conhecermo-nos interiormente, reconhecer sentimentos, emoções, pensamentos, medos, desejos profundos, reencontrar memórias consoladoras ou perturbadoras, compreendê-las, encontrar beleza no inacabado que somos, ir descobrindo um sentido para a vida, descobrindo os outros e o lugar do Outro na história que queremos desenhar para nós.
O trabalho corporal tem igualmente um lugar importante: somos um corpo, é nele que nos expressamos, relacionamos, existimos. Tomar consciência da riqueza que nos constitui ajuda-nos a estar mais inteiros, a crescer numa liberdade responsável, em que cada um se aceita no seu processo de crescimento e sabe acolher o outro como ele é, num caminho partilhado. E neste caminho, como escreveu o Papa Francisco recentemente, sermos “tecelões da unidade”.
Uma última palavra para o silêncio, por onde talvez devesse ter começado: todo este processo de educação do olhar (da interioridade) pede um coração atento, disponível para escutar, uma cabeça que aprende a abrandar, um corpo que aprende a respeitar o ritmo do seu próprio respirar. Deixemos o silêncio falar dentro de nós. Que o possamos saborear. Um silêncio que nos abrace, nos acalme e nos abra ao mistério do Infinito que habita dentro de nós.
O mundo está virado do avesso…
“Me pregunto, cincuenta años después, si todo nuestro oficio de hombres no será, en rigor, otro que el de arroparnos los unos a los otros frente al frío del tiempo.”
nota 1 – Razones para el Amor, Martin Descalzo
nota 2 – Aventuras de João Sem Medo, José Gomes Ferreira
nota 3 – Every Brilliant Thing, Duncan Macmillan
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.