Recebi muitas palavras amigas a propósito do meu texto “Pessoas bem Educadas”. A todos agradeço. Tenho para mim que é muito importante na vida tornarmo-nos educados porque, no fundo, a verdadeira educação coincide com a caridade… Penso que há pessoas muito bem educadas e pessoas muito mal educadas em qualquer classe social e que as pessoas educadas têm uma nobreza própria independentemente da sua conta bancária, da cor da sua pele ou do seu apelido. E acho que o cristianismo – quando vai à essência de si mesmo e segue Jesus Cristo – é a melhor escola de educação que se possa imaginar. Gera pessoas nobres em todas as classes sociais e em todas as épocas da história.
Mas temos de distinguir a educação do mero cumprimento exterior de regras. Desde crianças que nos transmitem regras: “o que é que se diz?”, “tira os cotovelos da mesa”, “não se fala com a boca cheia”, “as senhoras passam à frente”, “devemos levantar-nos quando chega alguém mais importante”… Chamo “etiqueta” (em sentido muito lato) ao simples cumprimento exterior das regras ou normas que se convencionou observar na vida social. E chamo “educação” àquilo que, ultimamente, essas mesmas regras pretendem proteger e promover: o respeito pelo outro, a consideração, a nobreza dos sentimentos… Educação e etiqueta não são a mesma coisa.
Lembrei-me de uma história que se conta, passada com a rainha de Inglaterra durante uma recepção oficial a um chefe de estado asiático. A determinada altura do jantar foram trazidas para a mesa aquelas tacinhas com água e limão que por vezes se usam para lavar os dedos a meio da refeição. Diz que se chamam “lavandas”. Só que o convidado de honra, não estava habituado às ditas “lavandas”. Julgando que era para beber, pegou delicadamente na sua taça e – vai disto! – bebeu a água de lavar as mãos. Escândalo. Mas o que vem a seguir é que interessa. Parece que a rainha, ao ver o sucedido, pegou na sua própria taça e bebeu também. E, depois deste gesto da rainha, todos os outros convidados fizeram o mesmo e beberam das suas taças.
Não sei se esta história é ou não verídica mas serve bem para ilustrar a diferença entre etiqueta e educação. O convidado falhou a etiqueta e provavelmente gerou nalguns dos presentes um certo sentimento de superioridade e de gozo. Mas a rainha deu a todos uma grande lição de educação.
Longe de mim vir aqui desprezar as regras. As (boas) regras são muito importantes, quer a nível individual quer a nível comunitário. A nível individual promovem a disciplina e ajudam a que o nosso lado animal fique à porta de nossa casa, preso pela trela. A nível social e comunitário as regras geram identidade, fomentam a comunhão entre as pessoas e tentam garantir mínimos de decência e de delicadeza nas relações. Longe de mim, portanto, pensar que poderíamos viver sem regras na sociedade, nas nossas famílias ou na Igreja.
O meu “inimigo” não são as regras mas a sua absolutização. Como se o cumprir regras pudesse ser um fim em si mesmo. Num tempo de assustador relativismo esta via pode parecer uma tábua segura de salvação. Combate-se o relativismo cumprindo escrupulosamente as regras que existem (ou existiram num outro tempo arbitrário, mais ou menos antigo). Foge-se do relativismo mas só por fora. Por dentro cai-se num perigo ainda maior: a desumanização. Porque a etiqueta, fechada em si mesma, desumaniza. Só a educação humaniza.
A etiqueta normalmente cita regras (“deve-se” sempre fazer assim). A educação, pelo contrário, sabe que cada pessoa é única e que cada situação é única. Por muitas regras que existam, temos sempre de procurar o que é melhor e mais construtivo em cada situação.
Eis, a meu ver, algumas das diferenças entre educação e etiqueta:
A etiqueta ensina as crianças a dizer sempre “obrigado”, “desculpe”, “se faz favor”, “com licença”. A educação – depois de fazer tudo isto – ensina as crianças a pensar nos sentimentos dos outros e a ter aquela delicadeza de coração que as palavras, por si só, não asseguram.
A etiqueta normalmente cita regras (“deve-se” sempre fazer assim). Diz que não precisamos de pensar o que é melhor porque basta seguir as regras, o que “está escrito”. A educação, pelo contrário, sabe que cada pessoa é única e que cada situação é única. Por muitas regras que existam, temos sempre de procurar o que é melhor e mais construtivo em cada situação. A educação não costuma citar regras: fala de valores e de grandes ideais e vai à razão de ser das coisas. Conhece bem as regras mas olha sobretudo aos valores que elas promovem, questionando-se sobre os meios que melhor conduzirão a esses valores em cada situação concreta. Por isso a etiqueta é arrogante enquanto que a boa educação é humilde. E não hesita, eventualmente, em quebrar o protocolo se por aí passar um maior bem (como no caso da rainha).
A etiqueta prende-se aos detalhes e ao cumprimento dos detalhes como se aí estivesse tudo. A educação – pelo contrário – olha para coisas grandes. Como dizia Jesus, criticando os Fariseus e os Doutores da Lei, “vós coais o mosquito mas engolis o camelo” (Mt 23, 24).
Quando nos tornamos “pessoas da etiqueta” comentamos bastante as atitudes dos outros, criticamo-los, falamos nas suas costas e dizemos piadas acerca deles (dos “outros”, aqueles que não cumprem as nossas regras). Quando nos tornamos educados falamos muito pouco acerca dos outros. Antes de mais porque estamos muito preocupados connosco mesmos, com a correcção dos nossos defeitos, e depois porque aprendemos (mesmo em relação àquilo que nos outros nos parece errado) a dar o benefício da dúvida e a aplicar o princípio de “todo o mal calar e todo o bem falar”.
A etiqueta é clubista e sectária. Cria seitas entre aqueles que “cumprem” – os “puros” – elevando muros altos a separá-los e protegê-los dos que “não cumprem”. A educação – pelo contrário – é universal e cria pontes mesmo entre pessoas diferentes.
Quando nos tornamos “pessoas da etiqueta” comentamos bastante as atitudes dos outros, criticamo-los, falamos nas suas costas e dizemos piadas acerca deles. Quando nos tornamos educados falamos muito pouco acerca dos outros. Antes de mais porque estamos muito preocupados connosco mesmos, com a correcção dos nossos defeitos, e depois porque aprendemos a aplicar o princípio de “todo o mal calar e todo o bem falar”.
Quando nos tornamos “pessoas de etiqueta” ligamos muito a aspectos exteriores e formais como, por exemplo, se determinada pessoa usou aquela peça de roupa ou disse “vermelho” em vez de “encarnado” ou se bebeu a água da “lavanda”. Quando nos tornamos pessoas educadas não estamos tão preocupados com questões exteriores e formais porque sabemos que as verdadeiras questões são de conteúdo e acontecem no coração do ser humano. Estamos mais preocupados com o bem, a justiça, a honradez, com a dignidade, com o que o que possa ser mais construtivo, com transmitir a esperança ou com aquilo que faz crescer a verdadeira fé. Neste ponto Jesus era implacável: “Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, quando por dentro estão cheios de rapina e de iniquidade! Fariseu cego! Limpa antes o interior do copo, para que o exterior também fique limpo” (Mt 23, 25).
Em suma: a etiqueta preocupa-se com o cumprimento escrupuloso das regras (é formal, protocolar) enquanto que a educação se pergunta pelo sentido das regras. Simultaneamente muito livre e muito exigente, creio que este é o caminho do Evangelho.
Jesus certamente falharia muitas das nossas regras de etiqueta mas não há ninguém como Ele para fazer de nós pessoas educadas. No verdadeiro sentido da palavra.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.