Um dia, estava eu a concluir um trabalho a um sábado à tarde, num intervalo de tempo entre a desafiante hora do almoço…
(“Não comam com as mãos”, “Pernas direitas”, “Fala um de cada vez”, “Não se descasca assim”, “Não se come assado”)
… e a distribuição de filhos pelos torneios desportivos, Escuteiros, mais uma ida ao supermercado e o indispensável estudo com o filho disponível…
(“As crianças precisam de fazer desporto”, “têm défice de natureza e são pouco autónomas”, “precisam de uma boa alimentação e de hábitos de estudo”)
… quando o meu filho de oito anos resolveu aproximar-se de mim e abraçar-me, pelas costas:
— Ó mãe, eu não percebo: tu dizes que agora ganhas menos porque também trabalhas menos…
— É verdade, filho. Para a mãe poder ir buscar-vos à escola, levar-vos às atividades, poder estudar com vocês, levar-vos a passear, teve de fazer algumas opções, recusar alguns trabalhos… Mas não te preocupes, a mãe não está nada arrependida!
— Mas é que isso não faz sentido. Dizes que recebes menos porque trabalhas menos. Mas tu trabalhas mais do que a maior parte das pessoas! Nós damos-te muito trabalho… e muita despesa! Se tu trabalhas mais do que os outros e tens mais despesas por teres quatro filhos… porque é que recebes menos?!
Deu-me um beijinho e foi-se embora, à sua vida, deixando-me em total desconcerto. A questão que me colocara não era propriamente nova. Trabalhar fora de casa, cuidar da mesma e assumir a educação dos filhos tem sido há muito o dia-a-dia de muitas mulheres. Hoje é também o dia-a-dia de muitos homens, felizmente, porque a luta pela igualdade tem dado os seus frutos. Mas a igualdade, por si só, não responde à pergunta do meu filho… Fará sentido que as mães e os pais, mesmo partilhando tarefas, tenham de trabalhar muito mais horas, com um elevado grau de responsabilidade, respondendo pela saúde física e mental dos seus filhos, pela educação daqueles que serão os futuros cidadãos do país, e isso seja tão pouco valorizado?
Segundo um estudo da Universidade de Coimbra, de 2008, os pais portugueses gastam em média 236 a 678 euros por mês com cada filho, até aos 25 anos. Fora os extras…
(“A sua filha tem de pôr aparelho”, “Acho que preciso de óculos, mãe”, “Vou fazer o Powerpoint em que computador?”, “Pagamos isto tudo de água e de luz?!”)
Estamos a falar de valores incomportáveis para uma boa parte das famílias, que agradece os aumentos verificados no Abono de Família, mas que precisa de bem mais para fazer face às suas despesas. Vale, em muitos casos, o suporte dos avós, financeiro e logístico, até porque, sem ele, é preciso contar ainda com o valor do prolongamento e/ou transporte escolar, se os filhos terminarem as aulas às 16h e os pais só saírem dos empregos às 19h ou 20h. E há ainda outros extras…
(“Estes TPCs todos, até amanhã?!”, “Quatro testes na próxima semana?!”, “Como assim, não percebes a matéria?”, “Já somos dois, vamos ter de arranjar um explicador”, “Porque é que estás a chorar?”, “O que é que aconteceu na escola?!”, “Não batas a porta!”, “Vamos ter uma longa conversa”)
Sim, é preciso não esquecer que, para além de tudo o resto, os filhos precisam, como de pão para a boca, de quem os cuide, acarinhe, oiça, explique, apoie, ensine, ralhe, valorize. Os professores falam de alunos carentes e emocionalmente instáveis, tristes, zangados com a vida, violentos e desestabilizadores. Apontam o dedo aos pais (em tantos casos com razão), mas como se pode exigir tanto do pais, quando eles são, tantas vezes, os primeiros a precisar de ajuda? Se lhes falta, para além de um orçamento menos apertado, tempo, formação, braços, pernas, cabeça, paciência, razão e horas de sono?
Em fevereiro deste ano, 40 organizações entregaram ao Governo uma proposta de Estatuto de Cuidador Informal que pretende garantir um conjunto de direitos e garantias para quem cuida voluntariamente de uma criança, jovem ou adulto dependente. Uma luz ao fundo do túnel para quem tem ao seu cuidado familiares dependentes, mas também para quem sonha aventurar-se na maravilhosa aventura da maternidade… Cada vez menos, vá-se lá saber porquê!
Segundo dados de 2017, somos o terceiro país com menos filhos por mulher, antecedidos pela Espanha e pela Itália, onde as mulheres têm ainda menos filhos e mais tardiamente. Aponta-se o dedo à carreira, e também há quem fale de egoísmo. A verdade é que, enquanto a maternidade for encarada como uma mera escolha pessoal, que se transforma num voluntariado diário de uma exigência e responsabilidade máximas, que acarreta custos incomportáveis para tantas famílias, e que a tantas outras assusta, dada a instabilidade em que vivem, não se pode exigir milagres que invertam esta tendência. E se não a invertermos? Qual o futuro da Segurança Social? Que custos sociais e fiscais isso implicará para todos nós, e para as futuras gerações?
Imagino que não faltem especialistas a tentar responder a estas questões, traçando cenários e procurando soluções. Mas todos nós, sociedade civil, podemos e devemos dar também o nosso contributo:
— O que pode ser feito para garantir que, aqueles que o desejem, possam ter os filhos que gostariam, garantindo-lhes tempo e meios financeiros para cuidar deles e educa-los convenientemente?
— Deveria a maternidade\paternidade ser encarada como um emprego, com remuneração adequada, que faça com que uma mulher ou o homem que decida ou tenha que dedicar-se ao cuidado e formação dos seus filhos, não fique dependente do parceiro ou de terceiros?
— Deveria haver uma “escola para pais”, com módulos de formação obrigatória que ensinassem a cuidar, educar, alimentar, prevenir acidentes, ensinar a ensinar e a apoiar as nossas crianças nas diferentes etapas das suas vidas?
— Partindo do princípio que mãe e pai trabalham, por necessidade, prazer ou vocação, de quanto tempo precisariam, por dia, para acompanhar convenientemente os seus filhos? E em que meses (como é o caso das férias de verão) é que isso se torna, verdadeiramente, num problema? Como resolvê-lo, sem prejudicar o precioso e necessário tempo livre dos filhos?
— De que forma poderiam as empresas ser parceiras de uma verdadeira política de apoio à família? Como ajudá-las a flexibilizar os horários de trabalho, sem prejuízos? O que mudar, para que elas sintam que vale mesmo a pena contratar mães e pais, mesmo quando eles faltam mais porque os filhos adoecem, ou têm de sair a tempo de os ir buscar à escola?
Termino com um pequeno alerta: este artigo apela à dignificação e à valorização do exercício da maternidade e paternidade. Para tal, posso ter exacerbado o cansaço, o desgaste, o caos, a despesa. Ou melhor, não exacerbei, é mesmo assim. Só não clarifiquei que, a par de tudo isto, existe alegria, abraços, cumplicidade, partilha, aprendizagem mútua, sentido, amor, muito amor, que compensa tudo o resto. É exatamente por acreditar que ser mãe e pai é uma aventura única, que não gostaria que ninguém, suficientemente interessado, ficasse excluído dela… É que, para o caso de restarem dúvidas, liberdade de optar é poder escolher, com condições para tal. Adiar ou recusar a opção de ter filhos por falta de condições, tem outro nome: desigualdade e exclusão social.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.