E a velha imaginação do futuro?

Numa altura em que tanto do que está em causa nas nossas discussões tem a ver com identidade e linguagem, ler Lerner é perceber — por dentro — como é que uma e outra estão ligadas.

O narrador e protagonista de Leaving the Atocha Station, de Ben Lerner, é um poeta norte-americano que está em Espanha e não percebe muito bem o castelhano. Ao ouvir o que uma mulher lhe conta nessa língua, compõe de imediato várias histórias possíveis — de tal forma que, mais do que não a perceber, é como se a “percebesse por acordes, percebesse numa pluralidade de mundos”.

No segundo romance de Lerner, intitulado 10:04, o narrador e protagonista, um escritor, liga uma pintura do séc. XIX, Joana D’Arc, de Jules Bastien-Lepage — onde a futura santa tem uma mão que parece dissolver-se no fundo, mas um corpo realista que contrasta com o carácter etéreo dos anjos — e a fotografia que Marty leva com ele num filme do séc. XX, Regresso ao Futuro, de Robert Zemeckis — onde ele e os irmãos começam a desaparecer, à medida que a pré-história da sua família vai sendo desimaginada pela viagem no tempo do protagonista. Nessa fotografia está “a ausência do futuro”, diz o narrador de 10:04, enquanto que naquele corpo de Joana D’Arc está “a presença do futuro”.

No terceiro romance de Lerner, The Topeka School, o protagonista é um campeão de debates no liceu e futuro poeta que, numa das primeiras páginas, se vê, como agora se diz, confinado: “Juntamente com o puro terror de se encontrar na casa errada, ao dar-se conta de que esta era diferente, havia a sensação, devida à semelhança entre elas, de estar em todas as casas à volta do lago ao mesmo tempo (…).”

Esta é uma escrita em cima da hora do mundo. Não é que se debruce sobre a urgência climática, o racismo, a crise da pandemia ou a desigualdade social. Mas, numa altura em que tanto do que está em causa nas nossas discussões tem a ver com identidade e linguagem, ler Lerner é perceber — por dentro — como é que uma e outra estão ligadas. O que — atenção — não é nenhuma “flor literária” para académicos ou líricos. Em grande parte, a construção do nosso horizonte coletivo depende disso.

“Interessa-me muito a velha imaginação sobre o futuro”, diz Lerner numa entrevista feita por Isabel Lucas, no Público de 11 de setembro de 2015. “Quando escrevo 10:04 é um pouco a pensar em como se escreveu 1984 [de George Orwell], uma visão distópica sobre o futuro. 2001 [Odisseia no Espaço] é outra visão do futuro.”

Dia após dia, vamos perdendo a capacidade de ver além do “literal” das coisas, perdendo a capacidade de ir para lá do “explícito” do ecrã ou do “factual” dos dados.

A “velha imaginação” — sim, é muito isso que nos falta hoje, nestes nossos tempos tão vorazes e tão “jovens”. Dia após dia, vamos perdendo a capacidade de ver além do “literal” das coisas, perdendo a capacidade de ir para lá do “explícito” do ecrã ou do “factual” dos dados. E, com isso, vai-se enferrujando em nós também o que talvez se possa chamar a visão periférica da inteligência; uma atitude de atenção e escuta “panorâmica”, sem a qual não somos capazes de entender o contexto e a carga histórica dos assuntos, as entrelinhas das questões, as nuances essenciais que, tantas vezes, nos salvam do equívoco divisionista. Temos de refazer os canais de linguagem que nos permitam recuperar essa “velha imaginação”. É ao morrer em nós a capacidade de viver metaforicamente que ficamos mais expostos ao não-sentido, à depressão e ao medo de que os populismos se aproveitam.

Só descobri esta entrevista de Lerner ao diário português agora, na viagem do tempo que é a internet, mas cheguei aos seus livros há uns anos, através do antiquíssimo mecanismo do passa-palavra. No saudoso tempo pré-pré-pandemia, num dia de sol lisboeta, conversava sobre novos autores com Michael Holt, outro escritor norte-americano, e ele disse-me, “Gostas de DeLillo, não é? Então, tens de ler Ben Lerner.” Não são óbvias as afinidades entre a escrita de um e de outro, mas elas estão lá: a forma como o pessoal e o político, mais do que se cruzarem, formam um único movimento em direção ao mistério do mundo; ou o modo como, nos textos de um e de outro, a linguagem não é apenas o meio de revelação da história mas se revela, de certa forma, o centro da história.

Mas a minha surpresa, nessa viagem ao dia 11 de setembro de 2015, foi achar a referência que Lerner faz de John Berger, indicando-o como uma das suas inspirações. Uma surpresa como a das histórias bem contadas: uma surpresa que faz sentido. Num ensaio intitulado A Hora da Poesia, Berger diz que o impulso metafórico da poesia não se contenta em fazer comparações só porque sim, mas visa provar, através da soma total dessas correspondências, “a indivisível totalidade da existência”. E diz ainda que “a poesia dá à linguagem um cuidado porque torna tudo íntimo.” O coração destes romances de Lerner — autor que é também poeta e ensaísta — tem muito a ver com isso. Contra o estilhaçar do nosso tempo, a criação de uma totalidade através da linguagem; contra a indiferença do mundo, a invenção de uma linguagem cuidada, cuidadosa, que torna individuais, íntimas, as grandes questões.

“Qual é a função política do romance?”, diz Ben Lerner na tal entrevista ao Público. “Em parte é trilhar o caminho do processo histórico, seja no mundo financeiro ou artístico. Gosto de pensar que é uma fotografia íntima do modo como esse grande processo é, ou se vive, numa escala individual.”

E lê-se em The Topeka School: “Ele queria ser poeta porque os poemas eram feitiços, eram som esculpido, desfazendo e refazendo sentido, que infligia e repelia violência e tornava-te conhecido, ou conhecido por teres sido apagado, e podia ter outros efeitos nos corpos (…).”

A linguagem interfere no real e pode reinventar o real; muda-nos e muda o mundo. Somos o que comemos, dizem os avisos dos nutricionistas. Pois também somos o que dizemos, ouvimos, lemos, escrevemos, musicamos, calamos. Desde pequenos que não queremos que a história acabe ou que o protagonista morra — as duas coisas estão ligadas, que a história é o território da nossa linguagem e o protagonista, uma projeção da nossa identidade. Para lá do puro prazer da frase, do enredo, do pensamento, os livros de Ben Lerner dão-nos isso: a demonstração de que, se queremos revolucionar o nosso estar-no-mundo, temos de revolucionar a nosso ser-no-verbo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.