Desde o início da pandemia que ando fascinada com a fábula do pangolim mordido por uma cobra, ou do morcego mordido por uma cobra, ou do pangolim que comeu um morcego que foi mordido por uma cobra por sua vez almoçados por um chinês que morreu com Covid-19, que nos andam a contar para explicar a origem “natural” do novo coronavírus. Será uma explicação ou uma fábula?
Se fosse uma fábula, teria uma moral. E a moral parece ser “não comas animais exóticos que ficas muito doente”, mas como fábula deixa bastante a desejar. Está longe, por exemplo, da fábula que Esopo conta da raposa e das uvas, em que uma raposa cobiça umas uvas que estão demasiado altas numa parreira. Apesar das várias tentativas, acaba por se afastar porque não as consegue apanhar. Diz, no entanto, que não as quer porque estão verdes. Falta este “há, mas são verdes” na fábula do pangolim, por isso vamos chamar-lhe história da carochinha. Mesmo assim, estamos disponíveis para acreditar nesta historieta, mas rejeitamos com veemência que o vírus tenha sido criado num laboratório de virologia em Wuhan. Mas entre as duas possibilidades, bem vistas as coisas, qual será a mais, digamos, razoável?
É graças à nossa disponibilidade para acreditarmos em possibilidades mirabolantes que existe a política como espectáculo, encenação, coreografia. O pangolim mais recente consiste nos avisos do Primeiro-ministro e do Presidente da República à esquerda, à direita mais próxima da esquerda e ao país em geral de que uma crise política neste momento, em vésperas de votação do Orçamento do Estado em ano de pandemia e pós-pandemia, seria uma catástrofe. É provável que assim fosse, uma maçada a acrescentar às muitas que temos tido; mas sempre que estes avisos aparecem penso se alguém perguntou alguma coisa. Mas há alguma hipótese alguma vez de uma crise política acontecer agora?
Dramatizar possibilidades e mandar calar o próximo são instrumentos muito próprios da política. A encenação não é de resto novidade nenhuma.
Dramatizar possibilidades e mandar calar o próximo são instrumentos muito próprios da política. A encenação não é de resto novidade nenhuma. Para nos limitarmos à pandemia, pelo menos desde Março deste ano que temos vindo a assistir a variantes do papão de uma crise indesejada que iria estragar tudo (no meio do caos da pandemia). Entre a substituição de generais a meio da guerra (que não se faz), até às críticas às medidas de confinamento (que não se devem fazer), nada era aconselhável. Apelos a que ficássemos em casa foram repetidos à exaustão, enquanto as televisões repetiam os números de infectados, internados e mortos, sempre a aumentar diariamente*. O clima de terror por causa do vírus deu lugar a um discurso de mil cuidados: cuidado com o que fazem e dizem, não se vá dar o caso de se desencadear uma crise política que é tudo o que ninguém quer agora. Mas alguém perguntou alguma coisa?
Graça Freitas, a fazer lembrar uma célebre manchete do Expresso, começou por descansar os portugueses em meados de Janeiro dizendo que o novo coronavírus não ia chegar a Portugal. A partir daí, no entanto, nada demoveu a Directora-geral da Saúde (DGS) até chegar ao ponto máximo há dias de se permitir irritar com “a falta de patriotismo” dos que duvidavam dos números veiculados pela DGS desde o inicio da pandemia. A reacção de Graça Freitas é parente daquela de qualquer político no poder que acena com o papão da crise, da qual a crítica faz parte. Neste caso, houve perguntas, houve uma tentativa de escrutínio, mas que são entendidas como críticas. E entre “crítica” e “crise” há um parentesco etimológico de grande proximidade. Na dúvida, não pergunte.
Acontece que nunca houve tanto consenso no País, tanta concordância com as decisões tomadas no confinamento, no desconfinamento, na contingência, na calamidade. A paz é tanta que corremos o risco de adormecermos de tédio. Se assim é, então para quê tanto receio de uma crise que está mais longe de acontecer do que nós estamos daquele laboratório de virologia em Wuhan onde nos dizem não ter sido fabricado o vírus? Acena-se com uma crise política que não há porque nenhum partido está interessado nisso, quem sabe para esconder a que realmente há – social, económica – mas que ninguém consegue resolver.
* Noto que ainda ninguém referiu o seguinte, nem mesmo José Miguel Júdice. Todos os dias, há mais de 125 dias, que os telejornais nos apresentam os números totais de infectados, internados e mortos, desde o início da pandemia em Portugal. Mais do que não compreender por que razão o fazem, há que alertar – permitam-me o dramatismo – para o facto de esses números nunca poderem vir a ser menores do que são apresentados. Não haverá nunca números totais menores do que os que existem. Assim sendo, qual é a ideia?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.