SER-CRISTÃO É SER-POLÍTICO (III)
I have a dream…
Martin Luther-King
1. No écran Ponto sj dos últimos meses, insisti no quanto o cuidado pelos outros e pela vida da polis é responsabilidade inalienável de qualquer humano e, por maioria de razões, dos que nos consideramos cristãos: quer na preocupação individual com o bem-estar de todos quer no agir pessoal com vista ao bem comum.
Só que, importante como é, isso não basta. Para o bem comum ser realidade, precisa-se mais coisas. Por ex., uma análise não impressionista e subjectiva, mas crítica, do real social; um conhecimento rigoroso dos mecanismos sócio-económicos que produzem a riqueza de alguns à custa da pobreza ou miséria da maioria; uma vontade política de governantes, e dos cidadãos que os elegem recusando (ou aprovando) as suas propostas; uma “massa crítica” constituída por número elevado de cidadãos com opinião pública formada e forte, seguros de que o fito de uma governação é fazer do mundo um lugar solidário, justo e bom para todos. Desse modo, poder-se-á imaginar outras estratégias para a transformação das actuais sociedades viciadas em espaços humanos de bem-estar e felicidade geral.
A este propósito, 2018 faz memória de dois pontos luminosos no correr da História mais ou menos recente, quanto à esperança de mudança do mundo: 200 anos sobre o nascimento de Karl Marx e 50 anos sobre o Maio de 68 em Paris.
2. Algum tempo depois do aparecimento da industrialização nos países do norte europeu, as desigualdades – em termos de vida, condições de trabalho e habitação, salário, liberdade individual, acesso à cultura e à educação – tornaram-se gritantes. Ora perante esse atordoamento e dor, o judeu-alemão Karl Marx (filósofo e analista das sociedades e suas economias) – pensador que marcará para sempre a História mundial – equacionou já não um socialismo utópico (à la Saint-Simon ou Fourier, etc.), mas, com rigor dito científico, detectou e analisou os mecanismos instalados que geravam a exploração no trabalho. Pôs o dedo nas feridas, ao mostrar como o capitalismo vingava à custa da exploração do “homem pelo homem”, ao considerar os trabalhadores não como pessoas com direitos, mas apenas como ‘força de trabalho’, fixando por isso os seus salários no mínimo que permitisse manter a energia para trabalharem, independentemente do valor do que o seu trabalho produzisse.
Analisou também, Marx, o efeito nocivo da religião sobre as mentalidades, resignadas ao “vale de lágrimas” em que a maioria dos crentes julgavam dever viver, em vez de lutarem por uma vida digna e solidária.
(Curiosa e inesperadamente, em conversa tida há uns anos com Álvaro Cunhal, sabendo ele que eu era cristã, disse-me: “Sabe por que existe o comunismo? Porque vocês, os cristãos, não cumpriram o Evangelho… Se assim não fosse seria talvez dispensável.” Parece incrível, mas sim, disse isto.)
De facto, a resignação, entendida como vontade de Deus, era o que permitia viver na esperança de uma recompensa no post-mortem. Daí que o pensador alemão tenha produzido um célebre aforismo: “A religião é o ópio do povo”, o que – nos termos e contextos em que o disse – é exacto. Só que esse “ópio do povo” nada tem a ver com a proposta do Evangelho, do qual a igreja parece em geral ter ficado afastada.
Não resta dúvida de que o pensamento de Marx alterou para sempre o entendimento das relações de força e exploração entre classes sociais, entre capital e trabalho, entre patrão e trabalhador. E isso foi sendo utilizado de dois modos: quer como bola de arremesso, por vezes violento, por revolucionários simplistas e apressados, que usaram a seu jeito o pensamento de Marx – com isso suscitando um atávico medo do “marxismo”; quer como instrumento que permitiu avaliar melhor o modo de construir relações mais humanas, porque mais justas. É certo que hoje existem ingredientes diferentes dos do séc. XIX – nos meios de produção, tecnologias, condições para a exploração de muitos por alguns, com “o poder das empresas e de uma ‘super-classe’ transnacional, bem como na própria natureza dos Estados que se tornaram “uma espécie de ‘parcerias público-privadas’, conduzindo ao uso de recursos públicos para satisfazer interesses privados” (F. Louçã / M. Ash, 2017). Mesmo assim, a análise marxista do trabalho (e não só) é, e será, inescapável para todo o olhar crítico e acção eficaz sobre o que há.
3. 2018 faz também memória de um outro pólo de intervenção na História. Cumpre-se agora o cinquentenário do Maio de 68 em Paris, que depois teve efeitos em tantos mais lugares do Planeta. Universitários de Nanterre insurgiram-se então, e literalmente levantaram-se, contra o estado geral das coisas: na educação, cultura, relações humanas, política, etc. A eles se juntam operários e outros trabalhadores, questionando a vida tal como era vivida na sociedade francesa e, afinal, por toda a Europa.
“A imaginação ao poder” foi um dos slogans grafados nas paredes da cidade. A intenção era descobrir outra forma de viver, mais justa, mais igual, mais livre. Isto levou o país a parar, escutando vozes novas e corajosas nascidas do caos das ruas parisienses. Foi assim que, de repente, muitos de nós acreditámos que nada voltaria a ser igual.
O status quo, porém, tem raízes longínquas – no fundo das sociedades, nas instituições, nas pessoas, em cada um e cada uma de nós. A segurança da ‘mesmidade’ é mais fácil que a invenção de caminhos diferentes. E, se nada ficou na mesma na cabeça e no coração de uma geração, tudo ficou (quase) igual na trama da História. Por isso, só falta re-começar. Só falta dar vida ao sonho de uma Terra justa, bela, alegre, para todos.
Ser-cristão é, pois, ser-político de corpo e alma. Requer análise, meditação, amor, pertença, oração, imaginação, coragem, risco. Exige que demos a vida por esse sonho, ainda sem lugar mas possível, de uma Humanidade fraterna, como Deus a terá imaginado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.