Em dias de Páscoa, no meio de uma agenda preenchida por batismos, comunhões e crismas…proponho nestas linhas uma abordagem dos sacramentos a partir da reflexão sobre o dinamismo que eles imprimem em nós. Penso especialmente nos sacramentos da Iniciação Cristã (Batismo, Crisma e Eucaristia) e nos sacramentos de Cura (Reconciliação e Unção dos Enfermos). Contudo, aquilo que aqui se dirá pode aplicar-se aos sacramentos em geral. Desde logo, a minha reflexão parte da ideia de movimento, que associo aos sacramentos: estes não são algo que possa ser acolhido passivamente, de um modo intimista e autocentrado. Pelo contrário, o acolher da graça sempre há de provocar movimento. No batismo, começa o nosso êxodo. De cada vez que experimentamos a reconciliação (e a unção dos enfermos), regressamos à comunidade e ao caminho iniciado no batismo. Reconciliados – com o Senhor e com os irmãos – somos revigorados pelo perdão, e retomamos o nosso lugar entre a caravana desse povo que caminha em direção à terra prometida. Assim, pelos sacramentos, «tornamo-nos aquilo que somos»: homo viator.
Do chegar ao partir
Os sacramentos são ponto de chegada. Chegamos trazidos por alguém, levados pela mão ou carregados ao colo. Há caminho percorrido (mesmo no recém-nascido), quando seguramos na mão a chama daqueles que creram antes de nós. Frequentemente, o crisma torna-se a meta da formação cristã. Demasiadas vezes, é, literalmente, o fim de um percurso. Faz-me lembrar o exemplo de alguém que, com esforço e sacrifício, adquire a sua carta de condução para, depois do dia do exame, nunca mais voltar a conduzir.
Os sacramentos são ponto de partida, mais do que meta de chegada. Lançam-nos à estrada, são uma «licença para amar» sem medida. Mais do que um acolher passivo da graça divina, os sacramentos hão de ser um dom que responsabiliza, um envio missionário para a edificação da comunidade. E não há condição humana que não seja passível de ser convocada para a missão: também na enfermidade nos podemos abrir à graça; também numa cama de hospital se constrói a Igreja e se transforma o mundo; também aquele recém-nascido edifica a comunidade com a sua simples presença.
Do «chegar» ao «partir»: os sacramentos enviam-nos em missão. Corremos da meta para a partida, em busca do paraíso outrora perdido. Com Sebastião da Gama, repetimos: «Chegamos? Não chegamos? -Partimos. Vamos. Somos».
De Emaús a Jerusalém
Depois do encontro com o Ressuscitado – que tardiamente reconhecem à mesa, na fração do pão, – os dois discípulos regressam, de Emaús a Jerusalém. Percorrem com novidade aquele caminho antigo e conhecido. Uma nova via, plena de sentido, se abre diante dos seus olhos. O encontro com Jesus, o “Vivente”, trocara-lhes de novo as voltas. Este regresso exprime uma conversão, no sentido hebraico de teshuvá: uma inversão de rumo, um regresso a Deus, Aquele que transforma o desânimo em alegria. É também um regresso à comunidade dos discípulos. Do isolamento à comunidade: não será precisamente isso que experimentamos no sacramento do batismo ou da reconciliação? Ou na unção e pastoral dos enfermos? Esta ideia reforça a dimensão comunitária da vivência sacramental. Mais do que simples dispensadora, a comunidade é fiel depositária da graça divina; uma realidade que devemos realçar, sobretudo em sacramentos como a reconciliação e a unção dos enfermos, que tendem a ser celebrados de um modo mais «individualista». Importa haver momentos comunitários, quer para a celebração da penitência, quer para a unção dos enfermos (que não deve estar reservada aos moribundos), segundo as modalidades previstas. Um envolvimento que reforça o enraizamento comunitário dos sacramentos e que nos recorda que a Igreja é sacramento universal de salvação.
Da unção ao Ungido
Seria bom que a nossa pastoral sacramental não se ficasse apenas pelo óleo, pela água, pelos gestos, pelos sinais,…enfim, pelo rito. É preciso que os sacramentos nos levem ao próprio Cristo, o «Ungido de Deus». Da unção ao Ungido: mais do que «sinais mágicos» do poder da graça divina, a unção com o óleo (no batismo ou no crisma) há de levar à intimidade com o próprio Ungido (= Cristo). O mesmo vale para os outros sacramentos. Tal como o experienciou a Samaritana, os sacramentos devem inserir-nos neste itinerário que nos leva da água à fonte. A fonte é Jesus, «o Sacramento Original». Esta perspetiva deve presidir à preparação para a receção dos sacramentos, bem como às propostas a fazer àqueles que acabam de os receber.
Seria bom que a nossa pastoral sacramental não se ficasse apenas pelo óleo, pela água, pelos gestos, pelos sinais,…enfim, pelo rito. É preciso que os sacramentos nos levem ao próprio Cristo, o «Ungido de Deus»
Do Ressuscitado à ressurreição
A ressurreição começa pela verificação do túmulo vazio, sinal de que Cristo venceu a morte e, por isso, não deve ser procurado entre os mortos. Contudo, não basta o túmulo vazio: os relatos das aparições completam essa experiência e introduzem a comunidade nessa nova relação com o Ressuscitado. Uma relação que se prolonga até nós através dos sacramentos. Sem excluir outras possibilidades, estes perpetuam a presença de Cristo e dão-nos a experimentar uma vida nova, enquanto aguardamos a nossa própria ressurreição. Uma ressurreição que esperamos, mas que podemos desde já começar a pregustar, ainda que de forma antecipatória e incompleta. Sempre que morremos para o nosso egoísmo, quando vencemos o pecado, quando nos reconciliamos… enfim, quando nos abrimos à graça de Deus, em cada gesto de amor que realizamos, começamos já a «ressuscitar». Não estou com isto a defender que a ressurreição – aquela última, em que ressuscitaremos com Cristo – acontece já agora, na sua plenitude. Apenas pretendo reforçar o absoluto ontológico de cada gesto de amor realizado. Um amor que tomamos de Deus por empréstimo, que dá forma aos sacramentos, e que nos orienta, desde já, para a ressurreição.
A ressurreição implica descontinuidade: por isso falamos de uma nova criação. Contudo, também implica continuidade: isso mesmo no-lo recordam as marcas da paixão, que Jesus traz consigo, quando aparece aos discípulos. Na criação primeira, Deus cria algo totalmente novo, ex nihilo; na ressurreição final, entendida como uma nova criação, Deus cria ex vetero: tudo será renovado em Cristo, a partir do que era antigo. Assim, a nossa experiência quotidiana nunca será totalmente alheia à ressurreição final. Para a vida eterna, levaremos connosco algumas das marcas da vida presente, enquanto completamos em nós aquilo que nos falta da paixão de Cristo. Também o contrário se verifica: o presente traz em si o selo da eternidade. Enquanto encontro com o Ressuscitado, os sacramentos são o lugar onde podemos desde já experimentar o odor da ressurreição final. O óleo com que somos ungidos traz até nós o perfume da eternidade. Assim, importa reforçar a dimensão escatológica da vida sacramental. Caminhamos, de olhos postos no caminho, mas sem perder de vista o horizonte, onde nos sabemos esperados.
Da tristeza à alegria
Uma salvação integral: é disto, e nada menos, que se trata. Os sacramentos não servem apenas para salvar a alma, mas orientam-se para a saúde integral (= salvação, = felicidade plena, = vida eterna) do ser humano, que é união indistinta de corpo e alma. A alegria (companheira das dificuldades e, até, do sofrimento) é o selo de garantia da autenticidade da experiência cristã. É isso mesmo que vemos nos Atos dos Apóstolos. Mutatis mutandis, a alegria é sacramento (sinal visível de uma realidade invisível) da experiência cristã. Quase a terminar o tempo pascal, não esqueçamos: hoje, em cada dia…(re)começa o nosso êxodo! Uma Páscoa…com muitas páscoas!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.