Dizer que “violência gera violência” não basta!

Não podemos pôr ao mesmo nível a violência estrutural e endémica que a comunidade afro-americana tem sofrido, e que está na raiz do presente conflito, e a violência, apesar de censurável, de ações de protesto em reação à injustiça racial.

Randy Rosie Lewis. Robert Johnson. Rayshard Scales. David Tylek Atkinson. Finan H. Berhe. Adrian Medearis. Dreasjon Reed. Jah’ Sean Iandie Hodge. Qavon Webb. Demontre Bruner. Said Joquin. Brent Martin. Shaun Lee Fuhr. Breonna Taylor. Ahmaud Arbery. George Floyd.

São estes os nomes de alguns dos cidadãos afro-americanos que foram mortos pela polícia nos Estados Unidos só no passado mês de maio. De acordo com os dados divulgados pelo Washington Post, desde 2015, mais de 1200 cidadãos afro-americanos foram perseguidos e assassinados pela polícia. Tendo em conta que a população afro-americana representa apenas 13% da população geral dos EUA, a taxa de incidência dos atos de brutalidade policial contra esta comunidade representa mais do dobro daquela exercida contra a população branca.

Dispensam-se os moralismos.

No passado sábado acordei com a mensagem de um amigo que me perguntava se, em solidariedade para com as vítimas da violência policial, me iria juntar à marcha de protesto que estava marcada para o início da tarde com destino a Union Square, em Nova Iorque. Participar ou deixar de participar nas acções de protesto não é uma decisão fácil se considerarmos que os perigos associados à pandemia persistem na cidade. Todavia, dei-me conta da existência de dois bens de valor semelhante em causa: a saúde pública e a justiça social. Nestas situações limite, em que interesses e bens públicos podem estar potencialmente em conflito, o discernimento e decisão pessoal, com liberdade e responsabilidade, mostram-se fundamentais. Nesse processo, os moralismos dispensam-se! A prudência de uns não justifica o julgamento moralista sobre aqueles que optaram pelo protesto público; o ativismo de outros não valida a condenação dos que privilegiaram o distanciamento social. A complexidade da situação que os Estados Unidos estão a atravessar vai muito para além de um mero ser a favor ou contra a realização de ações de protesto em tempos de pandemia.

Dispensam-se os reducionismos.

Nos últimos dias, os protestos têm-se intensificado e, nalguns casos, degenerando-se em atos de puro vandalismo e ameaça ao bem-estar e segurança da população em geral. De acordo com alguns media, há pessoas infiltradas nas ações de protesto com intuito único de incitar à prática de atos criminais (roubos, destruição da propriedade privada e de bens públicos) à revelia dos próprios organizadores e restantes participantes das manifestações. De acordo com o Governador do estado de Nova Iorque, importa distinguir as ações de protesto e descontentamento que naturalmente criam (des)ordem – afinal, esse é o ponto de um protesto, o de interromper uma ordem que é vivida como injusta – dos atos de puro vandalismo que ameaçam a segurança dos cidadãos.

É certo que os atos de vandalismo não são de todo defensáveis, mas é preciso não perder de vista o que de facto está aqui em causa. Importa ser consciente de que os protestos contra a injustiça racial que assola o país, ainda que possam criar desordem, não são uma questão política de anarquistas ou extremistas contra o Estado de Direito, como o presidente dos EUA quis fazer passar nas suas últimas intervenções públicas.

É, pois, fundamental não reduzirmos este problema a uma discussão sobre a licitude ou ilicitude do uso de violência. O ponto é outro. “Então és a favor da violência?” – perguntar-me-iam alguns de imediato. A resposta impõe-se, em forma de questão: “Mas qual violência e, já agora, a de quem?” Apoiar ações de protesto em tempo de Covid-19 e demonstrar compreensão até mesmo em relação a determinados atos geradores de conflito não significa apoiar a violência!

Importa ter em mente que a violência dos protestos não é o problema proeminente. Esta constitui apenas um sintoma de um mal mais profundo que, ao longo dos séculos, tem infetado a sociedade e instituições deste país.

Por outro lado, o recurso ao lugar-comum de que “a violência gera violência” pode constituir uma rejeição a enfrentarmos a seriedade da situação. Importa ter em mente que a violência dos protestos não é o problema proeminente. Esta constitui apenas um sintoma de um mal mais profundo que, ao longo dos séculos, tem infetado a sociedade e instituições deste país. Na verdade, a violência que se tem gerado nos confrontos com a polícia e nas ações de protesto não se compara à violência sistémica e disseminada que a comunidade afro-americana tem sofrido ao longo da história dos EUA, desde a escravatura e da segregação racial do período Jim Crown, às desigualdades no acesso à saúde e educação e no que se refere à detenção e encarceramento prisional, sem esquecer obviamente a violência policial.

É inaceitável que numa democracia que apregoa valores de justiça, igualdade e liberdade, se assista às imagens de que o mundo inteiro se tornou testemunha: um polícia imobilizar um cidadão desarmado em plena praça pública ao ponto de, ignorando o grito de socorro, o matar lentamente por asfixia. Sabemos que, infelizmente, este não é um caso isolado. As execuções públicas realizadas por órgãos auxiliares de justiça continuam a ser uma realidade tragicamente plausível para muitos afro-americanos. Como muitos o têm já afirmado, os linchamentos continuam. Mudam-se os tempos, mudam-se até as formas, mas a história repete-se.

Precisamos tomar consciência que a violência exercida constantemente – ao ponto de se tornar normal – por um órgão de segurança pública contra uma determinada comunidade, não é comparável à violência cometida por quem se sente ameaçado e encurralado. É certo que tanto a violência exercida por órgãos de segurança como a violência dos manifestantes partilham da agressividade e potencial destrutivo. Mas uma é repugnante e injustificável; constitui em si mesma a materialização do mal. A outra apesar da negatividade das suas consequências é passível de ser compreendida quando vista no contexto de uma realidade de opressiva e desumanizante. Uma conduz à morte e ao mal, apenas. A outra é simultaneamente agressão e um grito de desespero perante uma realidade social opressora e injusta que se tornou ainda mais evidente e dolorosa durante a atual pandemia.

No fundo, não podemos, em boa consciência, pôr ao mesmo nível a violência estrutural e endémica que a comunidade afro-americana tem sofrido ao longo de vários séculos, e que está na raiz do presente conflito, e a violência – também ela censurável – que tem decorrido de algumas ações de protesto em reação à injustiça racial.

Precisamos de ver, também nas ações de protesto, apesar da violência, a vontade e o desejo humano de transformação social. Estes atos de resistência e de rebelião são, no caminho em direção à justiça, uma mensagem de esperança de que a morte e a opressão não têm a palavra final. E de que há sempre uma alternativa, uma possibilidade rumo a uma realidade mais justa, se nos unirmos em solidariedade, mesmo que, neste processo de transformação, possa haver momentos de geradores de conflito.

O mundo não ficou indiferente perante a execução pública de George Floyd. As ações de solidariedade espalharam-se um pouco por todo o mundo. É bom que nos indignemos, que fiquemos perturbados e até zangados. É sinal de que estamos verdadeiramente vivos e despertos. É esta resistência contra tudo o que oprime a vida e o bem-estar de toda e cada pessoa que tem a força para nos unir em torno de mundo mais justo e humanizante. Por isso, dizer que “a violência gera violência” é pouco… A seriedade do problema e a solidariedade pedem-nos muito mais.

Fotografia de: –  GorillaWarfare – Own work

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.