Digitalização dos quotidianos: é possível inovar sem excluir?

O que se verifica é que, com a crescente digitalização, pessoas que são completamente autónomas e capazes de gerir o seu dia-a-dia, vão ficando progressivamente dependentes de outras.

Nos últimos anos temos vindo a integrar nos nossos quotidianos mudanças no funcionamento dos mais diversos serviços e instituições. Está em curso uma transição intensa e sistemática para o tratamento dos mais simples aos mais complexos assuntos com recurso ao digital e à Internet, sempre intermediados por meios como computadores, smartphones, tablets ou outros.

À partida esta é uma mudança boa e que facilita a vida das pessoas e das instituições. Existem muitas vantagens associadas à maior digitalização, que talvez nem fosse necessário elencar, que vão da maior facilidade de aceder às instituições, a bens e a serviços, à redução do desperdício de recursos, como por exemplo de papel, à poupança de tempo, entre tantas outras.

Esta acelerada digitalização de tantas dimensões das nossas vidas tem vindo a gerar alguns alertas, nomeadamente para o risco de violação grave de direitos fundamentais.

A digitalização dos quotidianos, impulsionada em grande medida por grandes empresas tecnológicas, tem uma dimensão global e certamente expressões e impactos diversos em diferentes locais. Olhando para a Europa, percebemos que a generalização do uso de meios digitais para aceder a bens e serviços tem vindo a acontecer com velocidades diferentes nos vários países e locais, mas a um ritmo acelerado em todos. Esta acelerada digitalização de tantas dimensões das nossas vidas tem vindo a gerar alguns alertas, nomeadamente para o risco de violação grave de direitos fundamentais.

A AGE Platform Europe, uma plataforma europeia que congrega e representa organizações de pessoas adultas mais velhas a nível europeu, tem vindo a potenciar algumas discussões sobre estas questões[1]. O mote para o trabalho de alerta da AGE em relação a este tema tem tido por base relatos de experiências de cidadãos e cidadãs europeias que se confrontam com situações de violação dos seus direitos, e com a tomada de consciência de determinados riscos e dificuldades com os quais a digitalização acelerada os/as está a confrontar.

Também na academia, de projetos como o “Direitos humanos, ‘big data’ e tecnologia”[2], desenvolvido na Universidade de Essex (Inglaterra), têm resultado trabalhos como o relatório com o sugestivo nome “Uma gaiola digital continua a ser uma gaiola”[3]. Com este projeto, a equipa de investigação tem procurado alertar para o risco de violação de direitos humanos associada ao aumento da aposta no digital. Sublinha-se neste alerta o facto de nem sempre os direitos de todas as pessoas serem tidos em conta no desenho de novas tecnologias e de sistemas que não serão tão universalmente inclusivos como perspetivas mais benévolas em relação ao digital podem advogar. A este propósito, o historiador de tecnologia Melvin Kranzberg[4], em 1986, sublinhou que a tecnologia não é boa, nem má, nem neutra, remetendo para a ideia de que os seus efeitos dependerão sempre do modo e intuitos para que for utilizada.

Assim sendo, importa colocar a questão de como se pode avançar no desenvolvimento tecnológico sem que sejam violados direitos humanos. Importa garantir que as pessoas têm, efetivamente, acesso a meios, a conhecimentos e competências para usufruir das vantagens das tecnologias digitais, por um lado, e que existem alternativas ao digital, por outro.

Importa garantir que as pessoas têm, efetivamente, acesso a meios, a conhecimentos e competências para usufruir das vantagens das tecnologias digitais, por um lado, e que existem alternativas ao digital, por outro.

Para já, o que sabemos é que muitas pessoas não dispõem dos meios (smartphones, computadores, …) e/ ou não sabem utilizar estes recursos digitais, cada vez mais essenciais para o acesso a serviços essenciais, de que são exemplos:

– os serviços de saúde – seja no incentivo ao agendamento de consultas nos centros de saúde por e-mail, como acontece em Portugal, e em algumas instituições de saúde privadas que comunicam cada vez mais com os seus clientes pelos seus canais digitais;

– os serviços sociais – com o incentivo crescente para que os mais variados assuntos sejam tratados por canais como a Segurança Social Direta e/ ou via e-mail, desincentivando-se a ida às repartições públicas e, quando é necessário fazê-lo, frequentemente a solução passa pelo envio de documentos por e-mail – mesmo que se tenha os documentos na mão, como já me aconteceu;

– o acesso aos bancos e, por conseguinte, ao dinheiro, tem sido um dos serviços que mais tem gerado contestação, nomeadamente por pessoas adultas mais velhas, que veem o acesso ao seu dinheiro cada vez mais intermediado por meios digitais nos quais não confiam, em muitos casos, ou que não sabem utilizar, como acontece em tantos outros.

Em Espanha, um homem reformado com 78 anos criou no início de 2022 a petição “Sou velho, não idiota”[5], que a esta altura, em novembro de 2022, vai já com quase 650.000 assinaturas. Com esta campanha, o médico, agora aposentado, argumenta que “muitos idosos estão sozinhos e não têm ninguém para os ajudar”, enquanto outros, como ele, querem continuar “tão independentes quanto possível”, sem depender da família ou amigos[6].

A questão da dependência de outros para aceder a bens e serviços essenciais, bem como para ter acesso a informações que praticamente já só são disponibilizadas na internet, será um dos pontos essenciais desta questão e deste alerta,  que subscrevo. A digitalização crescente tem vindo a obrigar muitas pessoas a precisar de ajuda de outras, tornando-as dependentes para gerir questões do seu foro pessoal e obrigando-as, não raras vezes, a ter que dar acesso a informações privadas, que deveriam ter o direito de gerir autonomamente.

Por outras palavras, o que se verifica é que, com a crescente digitalização, pessoas que são completamente autónomas e capazes de gerir o seu dia-a-dia, vão ficando progressivamente dependentes de outras. E isto acontece porque não conseguem acompanhar o acelerado ritmo da digitalização, ou porque não conseguem adquirir os meios para aceder a informações, bens e serviços.

Penso que são evidentes alguns dos direitos que poderão estar em causa, como o direito à privacidade e ao sigilo. São também muitos e diversificados os riscos, nomeadamente de roubos, burlas ou outros abusos, que tantas vezes nos escandalizam, mas nos quais nem pensamos quando se vão progressivamente criando condições para os facilitar. Diria que isto é um problema e que, no mínimo, vale a pena pensar sobre isso. Contudo, parece-me que é urgente tomar medidas que garantam que a modernização que continuará a existir não se virará contra nós, mais cedo ou mais tarde.

[1] https://www.age-platform.eu/event/digital-cage-still-cage-digital-technologies-older-peoples-human-rights
[2] https://www.essex.ac.uk/research-projects/human-rights-big-data-and-technology/social-care#report
[3] https://www.equallyours.org.uk/university-of-essex-report-a-digital-cage-is-still-a-cage/
[4] Technology and History: “Kranzberg’s Laws” on JSTOR
[5] https://www.change.org/p/tengo-78-a%C3%B1os-y-me-siento-apartado-por-los-bancos-todo-es-por-internet-y-no-todo-el-mundo-se-maneja-pido-atenci%C3%B3n-humana-en-las-sucursales-bancarias-bbva-caixabank-bankinter-santander-resp-sabadell-help-cabk-responde-bbvaresponde-es
[6] https://pt.euronews.com/2022/01/26/sou-velho-nao-idiota-peticao-contra-digitalizacao-dos-bancos-espanhois

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.