O meu filho mais novo começou a ler há um ano e tal. Um belo dia, íamos de carro pela cidade e ouvi-o declamar, lá atrás: “Farmácia.” Declamar, sim, não exagero. O espanto, a alegria, a vida, que o meu júnior de cinco anos pôs naquela palavrinha esdrúxula não me permite usar um verbo mais corriqueiro. Era como se aquelas sílabas simples lhe brilhassem na boca, como se ganhassem uma verdade musical. Há poetas que falam do poder que certos nomes, ditos de certa forma, têm de criar a coisa nomeada. Ora bem: a farmácia concreta nascida daquela farmácia declamada teria de ser, no mínimo, um Taj Mahal. Pelo retrovisor, eu via o meu filho no banco de trás, preso pelos cintos de segurança à cadeirinha mas livre como nunca, a saltar de nome em nome. “Café”, “banana”, “telefone”! A partir daí, a janela do nosso carro tornou-se um cinema de palavras. De repente, todos os letreiros eram poemas; cada rua, uma obra completa; uma viagem, um recital. Mas, perdoem-me, não vim para aqui armar-me em pai babado. O que queria era perguntar — quando é que perdemos a capacidade do espanto? Quando é que desaprendemos a ler o brilho misterioso e essencial que há em cada coisa e em cada palavra? Quando é que começámos a ignorar o dom da escuta, a coragem para nos deixarmos levar pelas vozes que evocam os outros mundos deste mundo?
Uma dessas vozes é a de Dino Buzzati. Conhecia o nome do autor de O deserto dos tártaros (vira o filme baseado no romance) mas, incrivelmente, nunca tinha lido um livro seu. Um amigo oferecera-me, há anos, Pânico no Scala, uma coleção de contos do prosador italiano, mas o tempo foi passando e nunca o abri. Até que, no final do agora velho ano de 2017, deu-se um fenómeno buzzatiano no universo da minha estante. Numa viagem entre o computador e a cozinha, num instante de pura distração, aquele Pânico subiu aos meus olhos. Com uma clareza assustadora, dei-me conta de que, no caos das minhas leituras, os livros entravam e saíam, rodavam, dançavam, mudavam de lugar — todos menos aquele. Aquele magro livrinho fora o esteio da minha estante, durante semanas, meses, anos. Ele é que, por assim dizer, segurara aquela confusão de autores e vozes. Peguei nele de imediato, para não o largar até à última frase. Não sabia na altura, mas era como se, antes de abrir o livro, já começasse a viver segundo as suas regras — sim, que os contos de Buzzati estão cheios de felizes estranhezas (ou pequenos milagres?) como esta de um escritor chocar com um Pânico imaculado na prateleira.
Li-o há meses — já tanta coisa aconteceu entretanto — e ainda não me livrei das suas imagens. Tão fortes, tão reais, que não se vão embora. Imagens compostas, dir-se-ia, por quem ainda guarda essa velha ousadia do espanto; densas e, ao mesmo tempo, leves, imprevisíveis mas sempre justas.
Numa das histórias, um quarentão vai brincar com as crianças, julgando-se criança, e entra no além das fábulas — onde se diz “a uma porta secreta abre-te” e a porta abre-se de verdade, onde se diz “seta, por brincadeira”, e se morre por uma seta a sério. Noutra história, o novo comandante da polícia chega à cidade e sobe à torre mais alta. As casas dos homens, diz, “não estão à espera de ser observadas pelos telhados e revelam, por isso, muitas coisas”. É o que fazem também, de certo modo, estes contos de Buzzati: olham a nossa vida a partir de cima, a partir dos nossos silêncios, da nossa solidão, dos nossos sonhos, e apanham-nos desprevenidos.
Neste tempo do politicamente correto, em que dá ideia que se tem de explicar cada vírgula, estes contos desalinhados são aulas de liberdade. Neste tempo de excesso de informação, em que parece que tudo tem de ser literal e chato, estas alegorias fazem-nos ver o interior das coisas, divertindo-nos e comovendo-nos. Neste tempo voraz, em que tudo é urgente, como se a vida não fosse mais do que uma vertigem de resultados, o que é urgente é atentar em vozes assim. (“Desde que as montanhas estão proibidas, a imaginação trabalha secretamente, mais do que nunca, neste assunto” — diz-se no conto As montanhas estão proibidas.) Num tempo de “tweets”, “soundbytes” e outras aspas que tais, são essenciais frases como as dos contos de Buzzati, linhas que demoram em nós, sem prazo, sempre inesperadas. Frases sábias e ingénuas como as das crianças. (“Olha, Pai, os carros estão cheios de outono”, deixou cair o meu sobrinho de dois anos, no outro dia, numa viagem com o meu irmão, vendo as folhas das árvores caídas nos vidros.)
Muitas vezes, fala-se da “cultura da imagem” para explicar esta crise da palavra em que parecemos viver. Não sei se será a melhor justificação. Talvez as causas primeiras estejam, precisamente, no excesso de paleio. Qualquer poeta sabe da importância do espaço em branco da página. Todo o escritor sabe que o silêncio é o grande mestre. É assim que vamos desaprendendo a arte da conversa — conversando por tudo e por nada. E também nisso acertam estes contos breves. Aqui não há palha, e as repetições têm significado. Leia-se o Conto de Natal: quatro ou cinco páginas bastam para uma obra-prima.
Tenho cá para mim que o fanatismo do facto — do facto contabilizável, técnico, literal — é que criou condições para a cultura atual do (carreguem nas aspas, por favor) “facto alternativo”. Para combater a desinformação e a mentira, é preciso bom jornalismo e bravura na discussão de ideias, com certeza. Mas também faz falta a palavra antiga, artesanal, que evoca imagens maiores do que nós, e adensa sentidos, e transporta mistério, e não tem medo da interrogação, e é verdadeira como a voz de uma pessoa. Nesta época de factos contra “factos”, são ainda mais valiosas histórias como estas — sem acontecimentos. Alegorias realistas, parábolas que duvidam, contos de fados, onde há menos causas e efeitos do que uma tensão que cresce e cresce até rebentar como uma onda. Ou como a vida?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.