Democracia: entre o nome e o espírito 

A força da democracia não está na unanimidade, mas na capacidade de sustentar a diferença sem a anular.

Estamos a assistir, quase sem dar por isso, a uma transformação subtil — e perigosa — da ideia de democracia. Aquilo que durante décadas entendemos como um espaço de contenção, de convivência na diferença, começa a ser reinterpretado como um exercício de força: o domínio da maioria sobre tudo e todos. E, no entanto, é precisamente aí que a democracia deixa de o ser.

No seu espírito mais profundo — aquele que nasce da tradição republicana — democracia não é o governo da maioria. Ou, pelo menos, não é só isso. É, acima de tudo, um regime de contenção: um espaço onde a vontade da maioria se submete à exigência de respeitar a minoria. Onde a diferença não é apenas tolerada, mas protegida. Onde o desacordo não é um obstáculo à convivência, mas a sua condição.

Esse é o ideal que moldou a ideia europeia — e ocidental — de democracia. Um regime que não procura esmagar o conflito, mas acomodá-lo. Que reconhece a dignidade de cada voz, mesmo quando dissonante. Que entende que os limites ao poder, mesmo ao poder eleito, são a verdadeira medida da liberdade.

Esse é o ideal que moldou a ideia europeia — e ocidental — de democracia. Um regime que não procura esmagar o conflito, mas acomodá-lo. Que reconhece a dignidade de cada voz, mesmo quando dissonante. Que entende que os limites ao poder, mesmo ao poder eleito, são a verdadeira medida da liberdade.

Mas esse ideal parece hoje vacilar.

Vemos emergir outra conceção — mais crua, mais impaciente — da democracia como simples imposição da maioria. Uma ideia que confunde força numérica com legitimidade moral. Que reduz o dissenso a obstáculo, e a liberdade a risco a evitar. Não é por acaso que uma parte da juventude, crescida sob o signo do medo — medo do futuro, da insegurança, do outro — se mostra disposta a ceder liberdade em troca de promessas de proteção. A democracia, nesta aceção totalizante, começa sempre com a exclusão dos que não alinham.

Mas nenhuma conceção se faz sem danos. E o mais grave de todos talvez seja este: a supressão de uns pelos outros, ainda que esses outros sejam a maioria. Quando a maioria se esquece de que a sua força deve ter limites, o que sobra não é democracia — é tirania.

Democracia, para ser digna do nome, tem de ser um espaço em que ninguém pode ser descartado. Nem os fracos, nem os excêntricos, nem os incómodos. A sua força não está na unanimidade, mas na capacidade de sustentar a diferença sem a anular. É essa a beleza — e a fragilidade — do projeto democrático, no melhor da nossa tradição europeia.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.