Desde os primeiros tempos da Igreja, os concílios foram convocados para definir questões de fé importantes. O concílio Vaticano II abriu uma excepção quando, desde o início, se apresentou com um objectivo pastoral: o de buscar um novo fôlego para a Igreja, pela atenção renovada às fontes da sua identidade (“refontalização”); e pela actualização da sua relação com um mundo em transformação acelerada (“aggiornamento”). No entanto, na sequência da abertura de novas perspectivas nos estudos bíblicos do século XX, o concílio percebeu a necessidade de aprofundar um tema da maior importância para a fé e que já vinha do anterior concilio Vaticano I: a revelação de Deus. Como compreender hoje que Deus comunique com os homens, na sua língua, na sua história, de modo a fazer-se compreender? Como compreender que Deus se tenha revelado progressivamente ao longo dos tempos, se tenha revelado em Jesus Cristo e se continue a revelar hoje à sua Igreja? Como é que a Bíblia é Palavra de Deus e revelação?
O documento abre – no texto latino – com as palavras que lhe dão título: “Dei Verbum”, isto é, “Palavra de Deus”. “Palavra” pela qual Deus comunica com os homens e mulheres, criados precisamente como interlocutores dessa Palavra; mas também “Palavra” que Deus é, pela qual não só comunica mas se comunica a si mesmo e nos convida à comunhão com Ele. Vamos aqui apresentar a Constituição dogmática Dei Verbum em duas partes: a primeira trata da revelação de Deus em si mesma e da sua transmissão (capítulos 1-2 do documento); a segunda trata da Sagrada Escritura, da sua leitura, interpretação e importância na vida da Igreja (capítulos 3-6). O documento não é extenso, mas aconselha-se uma leitura doseada ou meditada: porque não dez minutos por dia? Seis capítulos em seis dias!
A Revelação e a sua transmissão.
A revelação de Deus consiste indissociavelmente em palavras e obras: antes de mais a obra da Criação, depois toda a história da salvação protagonizada pelo povo de Israel; na plenitude dos tempos a revelação iniciada pelos profetas completa-se em Jesus Cristo. Deus diz-se totalmente em Jesus e em Jesus tudo nos fala de Deus. Jesus, humanidade de Deus, torna visível o mistério do Deus invisível. Tudo o que a vida histórica de Jesus nos revela de Deus, pela sua ressurreição e dom do Espírito em Pentecostes, o mesmo Espírito Santo nos vai ajudando a assimilar, ao longo dos tempos. A revelação está assim sujeita a uma tensão: totalmente patente na humanidade de Jesus Cristo, Deus revela-se como mistério insondável. Isto não significa que não possamos compreender, porque Deus revelou-se para que os homens compreendessem. Significa antes uma compreensão que não tem fim.
O documento valoriza a inteligência humana, designada “luz natural da razão”, ao ponto de a considerar capaz de um certo conhecimento de Deus. No entanto, a revelação transforma esse conhecimento, pela fé e pelo Espírito Santo, numa relação de amor, na qual Deus é o amor que se conhece e no qual se conhece. Ora a revelação é-nos transmitida pela Escritura e pela Tradição. Contra uma certa tendência a separá-las, e criando uma convergência importante entre Católicos e Protestantes, a Dei Verbum afirma a unidade da Escritura e da Tradição. A Tradição é o conhecimento vivo de Cristo que gerou as Escrituras, e por sua vez as Escrituras geram o conhecimento vivo de Cristo que cria a Tradição. Estão ambas referidas a Cristo, interpretam-se uma à outra e assim transmitem-se juntas, desde a geração dos apóstolos até hoje, como acção do Espirito Santo que atravessa a história dos homens.
A Escritura é ela mesma Dei Verbum, Palavra de Deus. Não uma Bíblia fechada e arrumada numa estante, mas num processo vivo de leitura de fé, que corresponde ao processo vivo de fé que levou à sua escrita e composição.
A Escritura, sua interpretação e importância na vida da Igreja.
A Escritura é ela mesma Dei Verbum, Palavra de Deus. Não uma Bíblia fechada e arrumada numa estante, mas num processo vivo de leitura de fé, que corresponde ao processo vivo de fé que levou à sua escrita e composição. O documento reconhece ao Espirito Santo um lugar central na redacção inspirada dos livros bíblicos, assim como na sua interpretação. É Deus o autor da Escritura, é ele quem se comunica através do trabalho literário dos autores inspirados. Também a leitura tem de atravessar a espessura dos textos, na sua complexidade literária e na diversidade de contextos histórico-culturais. Mas finalmente é o Espírito Santo que a faz falar em nome de Deus. Deste modo, na fé e no Espírito Santo, prossegue o diálogo de Deus com cada um e com a Igreja. Apesar da diversidade dos géneros literários, ou mesmo das duas grandes etapas da revelação que são o Antigo e o Novo Testamento, toda a Bíblia converge e aponta para a revelação de Deus em Jesus Cristo. Neste princípio da unidade do sentido de toda a Escritura se encontra o critério de interpretação de cada uma das suas páginas. Um só versículo, à luz do conjunto da Bíblia, pode falar-nos de Jesus.
Finalmente a “Dei Verbum” reconhece a enorme importância da Escritura na vida da Igreja. Em conjunto, a Escritura e a Tradição dão-nos o conteúdo e o critério da fé cristã. O documento usa a imagem das “duas Mesas” para dizer que assim como nos alimentamos do pão eucarístico devemos também alimentar a nossa fé com a Palavra de Deus; lendo-a, meditando-a, estudando-a, para que se faça vida em nós.
Nota: este texto foi originalmente publicado no site essejota que atualmente não está disponível online.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.