Da denúncia profética já esquecida…
Vivemos numa sociedade de extremos. Há quem procure o conflito pelo conflito e quem o evite a qualquer preço. Muitas vezes, por falta de silêncio interior, deixamo-nos levar ao ritmo e sabor dos acontecimentos. A vida toma conta de nós e marca os ritmos e opções que deveriam ser da nossa responsabilidade. Como que anestesiados e expectantes de um golpe de sorte, vamos assim “jogando” na “roleta” da vida a nossa própria vida. E, porque não estamos habituados ao silêncio, tememos-lhe a companhia, cujo “ruído” nos desestabiliza. Fugimos dele e refugiamo-nos no “ruído” de um “mundo” que nos continue a anestesiar e “embalar” numa melodia de profunda desintegração e dramático desencontro de nós próprios. Deste modo, ficamos envolvidos em “guerras” que não discernimos e em “batalhas” que por vezes não convêm, nem a nós nem aos outros.
Neste contexto, o sentido bíblico de Profecia parece ter deixado de fazer sentido. Impressiona-me muito a forma como oravam, pensavam e agiam os Profetas bíblicos. Admiro e interpela-me a sua força de carácter! Eram homens temíveis! A coragem, ousadia, capacidade de luta e selo de verdade que lhes era impresso por Deus, fazia deles autênticos “guerreiros” desse mesmo Deus. A força das suas palavras aterrorizava o mais forte, amedrontava o mais corajoso, fazia parar o mais intrépido, silenciava o mais arguto, desestabilizava o mais seguro… O Profeta interessava-se, em primeiro lugar, pela conduta ética e moral, quer sua, quer dos outros. A força da mensagem das suas palavras estava no serviço que prestava para que a verdade, a justiça, a defesa do mais débil, … norteassem a conduta de uma comunidade política, religiosa e familiar. Estes Profetas conheciam a tolerância? Sim, eram tolerantes com quem reconhecia o erro e mudava de conduta. Todavia, eram intolerantes com a mentira, a mediocridade, a tirania. Por isso, em geral, eram perseguidos e mortos por quem tinha o poder e os considerava uns “desestabilizadores” do status quo.
… à tolerância, dos nossos tempos…
A dificuldade em nos encontrarmos e vivermos a verdade, não nos afastará desse valor a que chamamos “denúncia profética”? Vale tudo do mesmo modo? Se assim penso, não acredito em nenhum valor; aliás, deixa de existir valor algum! Por vezes, tentamos justificar isto de uma forma muito bonita, embrulhando tudo nessa palavra muito apelativa que se chama “tolerância” pelo outro e que nos faz ser “diplomatas” do respeito: «Tu tens o teu caminho, escolheste-o. E eu, por respeito a ti e às tuas escolhas, nada mais devo fazer do que deixar-te seres quem és e o que escolheste ser». Será isto tolerância? Será isto querer bem? Não estaremos aqui a entrar no campo do relativismo e da indiferença para com o outro?
Clarifiquemos: a tolerância não implica que me demita de identificar o erro. O facto de, objetivamente, o encontrarmos (v.g.) no que uma pessoa diz ou faz e o declararmos tal, não traduz uma atitude de intolerância. Por outro lado, o estar de acordo com alguém, nada tem de tolerância; significa, simplesmente, concordar. A tolerância é uma atitude cívica, mas como tal não pode escamotear a verdade. Trata-se, no fundo, de capacidade para aceitar a diferença, sem nunca escamotear ou fugir à verdade num diálogo racional.
A tolerância é uma atitude cívica, mas como tal não pode escamotear a verdade. Trata-se, no fundo, de capacidade para aceitar a diferença, sem nunca escamotear ou fugir à verdade num diálogo racional.
Como diz Reboul, indiferença e tolerância andam, na sociedade ocidental, muitas vezes juntas. Para não se ferirem suscetibilidades, rejeita-se todo o valor exclusivo que anteponha aos outros valores ou os valores dos outros, endeusando-se a aceitação incondicional de si e do outro e o respeito pelas diferenças. Como consequência, há que tolerar, por exemplo, a intolerância!
Este modo de pensar tem por detrás a marca do relativismo e a dificuldade de assumirmos e vivermos compromissos estáveis e duradouros, quer a nível afetivo quer a nível cultural. Em palavras de Harman, o relativismo diz-nos que não existe uma moral verdadeira, mas que existem muitos quadros de moralidade diferente, nenhum mais correto que os outros. A globalização que vivemos potencia um diálogo e um encontro entre culturas e povos, mas pode conduzir também a maiores injustiças e marginalizações. A diferença cultural, nesta perspetiva, não pode ser vista como uma ameaça, mas antes como uma fonte para a compreensão do mistério humano, competindo à educação, numa sociedade multicultural e multirreligiosa, o papel mais poderoso no processo de inclusão.
… e à tolerância como atitude a cultivar na educação
A tolerância surge, também, como uma atitude cívica prioritária no abrir caminho ao acolhimento do outro na verdade, à sua compreensão, a um diálogo conducente à valorização dos valores e ao confronto e denúncia crítica e positiva dos seus limites. Este é o único caminho possível para a aceitação da diferença do outro, no respeito pela sua dignidade. Um caminho que conduz necessariamente à paz, e que se há-de percorrer em diálogo e compreensão, algo só possível através da educação. O pressuposto básico para esta paz é que todas as culturas, embora diferentes, estejam unidas pelo mesmo princípio: a autenticidade, isto é, uma orientação moral muito clara na defesa incondicional do homem como pessoa e da sua dignidade. Educar para uma paz que promova o humanismo integral implica, para além de uma proposta educativa ética consistente em termos de defesa da dignidade humana, uma ideia clara do que significa o valor da tolerância no plano dos valores e das atitudes, como momento educativo capaz de proporcionar um verdadeiro Encontro entre pessoas.
Por outro lado, um projeto educativo humanista deve assentar no pressuposto de que ninguém logra ser feliz sozinho e que todos somos responsáveis uns pelos outros! Há quem pense ter encontrado o “seu espaço”, o “seu cantinho”, o “seu mundo”, não se preocupando com o que o outro diz, faz, opina, tendo como base uma atitude radicada numa falsa compreensão do que significa ser tolerante. Endeusada num relativismo comodista inaceitável, esta “tolerância” transforma-se num caminho perigoso que nos pode conduzir a algo muito grave e de consequências imprevisíveis: o desinteresse pelo outro e pela participação na construção de uma sociedade mais humanista e humanizante. E, se nos demitirmos de a contrariar, há sempre alguém a decidir por nós!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.