Cuidar da melhor parte com liberdade

Peçamos a graça de saber cuidar do essencial, aprendendo a amar, a acolher o amor e deixarmo-nos acolher por ele, para que todo o serviço nasça deste amor e assim possamos dá-lo a conhecer aos outros.

A passagem do Evangelho que nos fala de Marta e Maria tem-me sido apresentada, nos últimos tempos, em diferentes contextos. É lida na liturgia no mês de outubro, inspira o tema de fundo do próximo ano dos Gambozinos: “Uma só coisa é necessária”, e tem estado igualmente presente na minha vida espiritual, pelo que escolhi debruçar-me sobre a mesma neste texto.

‘Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas, mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’ (LC 10, 41-42). Rapidamente a questão poderia ser colocada entre agir de um modo certo – orar; ou agir de um errado – servir. Mas seria demasiado fácil e redutor se bastasse cumprir uma ou outra coisa. Intuitivamente, concluímos que esta não é a lógica de Deus. Mais ainda, quando muitas vezes o Evangelho nos fala, justamente, da importância do serviço.

A questão central da repreensão que Jesus faz a Marta prende-se com o negligenciar o essencial – o encontro e a vida na presença de Cristo. Não é no fazer muitas coisas que teremos a recompensa do amor de Deus, dado que este é um dom que já recebemos, mesmo que nem sempre seja fácil ser reconhecido. O que leva Marta a interpelar Jesus face à atitude de Maria é não perceber o que lhe é pedido naquele momento, e que Maria teve sensibilidade de compreender. Marta no seu ocupar-se de muitas coisas, está somente por si, não consegue procurar e encontrar a Cristo. Assim, o seu serviço torna-se vazio, ao invés de promover a comunhão com os demais e ser expressão de um amor maior.

Não raras vezes, também a nossa vida pode estar assoberbada, sem que consigamos experienciar este encontro com Cristo, pelas nossas diferentes e múltiplas ocupações.

Não raras vezes, também a nossa vida pode estar assoberbada, sem que consigamos experienciar este encontro com Cristo, pelas nossas diferentes e múltiplas ocupações. Mas o que nos é proposto é que saibamos discernir e escolher o que mais nos conduz à Sua presença, a cada momento, no concreto das nossas vidas.

Para encontrar este caminho é necessário cuidar da oração, porque é sobretudo aqui que o Senhor nos “dá luzes para entender as verdades” sobre nós e sobre como estamos com Ele, estando recetivos a todo o bem e a toda a dor que daí possam surgir. Este caminho pressupõe um salto de fé e de liberdade, para que consigamos reconhecer e aceitar o que verdadeiramente somos, sem nos projetarmos naquilo que idealizamos ser, ou numa imagem daquilo que consideramos que Deus vê como boa pessoa.

É nesse sentido que o Papa Francisco nos fala na Audiência Geral de 31 de agosto de 2022, quando nos diz: “O discernimento é árduo, mas indispensável para viver. Requer que eu me conheça, que saiba o que é bom para mim aqui e agora. Exige sobretudo uma relação filial com Deus. Deus é Pai e não nos deixa sozinhos, está sempre disposto a aconselhar-nos, a encorajar-nos, a acolher-nos. Mas nunca impõe a sua vontade. Porquê? Porque quer ser amado, não temido. E o amor só pode ser vivido na liberdade. Para aprender a viver é preciso aprender a amar, e por isso é necessário discernir.”

Peçamos a graça de saber cuidar do essencial, aprendendo a amar, a acolher o amor e deixarmo-nos acolher por ele, para que todo o serviço nasça deste amor e assim possamos dá-lo a conhecer aos outros, seguindo assim as palavras de R. Tagore:

Dormia e sonhava que a vida era alegria,

Acordei e vi que a vida era serviço,

Servi e vi que o serviço era alegria

Do serviço alinhado com a fidelidade à vontade de Deus para cada um de nós, nasce a Alegria que procuramos nas tantas coisas com que nos ocupamos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.