Cristianismo e reencarnação: compatíveis?

Proposta cristã propõe a ressurreição como destino último e definitivo da vida humana, convidando-nos a jogar mais perfeitamente um jogo de Amor que compreende a fragilidade das coisas e da vida como bênção e caminho e não como fatalidade.

Em todas as culturas aparecidas e desaparecidas ao longo da história, a consciência humana foi sendo assombrada pelas mesmas questões fundamentais: qual é o destino do Homem? Existe uma Justiça que se realiza mais além das injustiças deste mundo? Qual é o sentido da vida? Simplificando: “o que é que andamos aqui a fazer? (e como?)”.

Ora, numa sociedade em que a facilidade de acesso à informação cresce na proporcionalidade inversa à prudência humana e à paciência no tratamento dos processos pessoais, é natural que a resposta a estas questões seja um caldo de confuso de ideias amorfas, que só satisfaz a pessoa na medida em que a resposta lhe caiba no bolso sem exigir grandes trabalhos e responsabilidades, e que se ajuste à sua vida entre os demais afazeres diários (desde que não atrapalhe a novela, o ginásio e a bola).

Assim, e como o cristianismo dá muito trabalho (toda esta questão do amor ao próximo e do perdão cansa. E da Cruz, nem se fala!), o Homem ocidental virou-se para doutrinas estrangeiras à própria cultura que lhe enchessem mais as medidas, nomeadamente no que toca à resposta sobre o seu próprio destino.

Consequência deste movimento, houve uma inundação simplista e massificada de espiritualidades e “espiritualismos” orientais no enquadramento cultural ocidental. Termos como Zen e mindfullness tornaram-se familiares, trazendo consigo um conceito de paz bizarro, que se confunde com uma ideia de impassividade e de “não me toques fica no teu espaço”, e que serviriam para alimentar egos ocidentais que se pretendem controladores de toda a experiência humana (incluindo a sua ausência!). Assim, é no meio deste pacote orientalista, muitas vezes já afastado do espírito budista ou hinduísta, que aparece, por arrasto, uma ideia de reencarnação que soa sedutora aos ouvidos daqueles dispostos a arriscar tudo numa vida (e salvação) individualista.

Assim, e como o cristianismo dá muito trabalho (toda esta questão do amor ao próximo e do perdão cansa. E da Cruz, nem se fala!), o Homem ocidental virou-se para doutrinas estrangeiras à própria cultura que lhe enchessem mais as medidas, nomeadamente no que toca à resposta sobre o seu próprio destino.

Se formos justos, é possível reconhecer uma certa ideia da reencarnação no seio de certas tradições gregas antigas como o orfismo, o pitagorismo ou mesmo o platonismo. Mas como doutrina sólida e estrutural da matriz cultural ocidental não se pode dizer que tenha exercido grande influência. Esta estranheza contribuiu para que seja difícil de precisar o que se entende exatamente por reencarnação no contexto do Ocidente atual, dado que muitas das conceções associadas a esta doutrina não são mais que visões ocidentais que “recolheram” certos elementos orientais e new age (o caso de certos cristãos que acreditam numa espécie de reencarnação evolucionista). Por este motivo, vale a pena uma breve pausa de clarificação.

Em traços gerais (e redutores), segundo sistemas filosófico-religiosos como o Budismo ou o Hinduísmo, a reencarnação – a “passagem” de um corpo a outro – está enquadrada num ciclo sucessivo de reencarnações (samsara) que obedecem a uma espécie de lei metafísica cósmica – a lei do karma – que “julga” o estatuto da próxima vida, segundo o comportamento moral da vida anterior. Simplificando muito, podemos dizer que, segundo esta lei, uma vida cumulada de boas ações levaria a uma reencarnação “num nível superior”, enquanto que uma vida tendencialmente dissoluta levaria a uma reencarnação “num nível inferior” (inclusivamente numa vida animal). Além disso, e embora haja várias escolas dentro do Budismo e do Hinduísmo, (cada qual com as suas características próprias), uma das notas gerais é que a “salvação” seria justamente a libertação deste ciclo de reencarnações, já que estas não são algo desejável em si, mas uma triste fatalidade.

Ora, no Ocidente, esta conceção de salvação foi derivando, ao ponto da reencarnação passar a ser confundida com a própria salvação. Este facto talvez não seja de espantar, uma vez que vem ao encontro de certos aspetos da nossa mentalidade (e inseguranças!). Reencarnar traz, de certo modo, uma espécie de reconciliação com a má gestão que fazemos do tempo, concretamente com o flagelo do FOMO (fear of missing out), já que nos dá uma espécie de possibilidade de regresso à vida terrena para “acabar o que tínhamos que acabar” ou para “experimentar coisas novas”. Esta ideia de segunda oportunidade é especialmente atrativa numa cultura que tem dificuldades em assumir algo como definitivo, contribuindo para a diminuição da angústia que possamos sentir em relação à nossa própria finitude e à ideia terrível de ver a vida e o destino decididos de modo irredutível.

Reencarnar traz, de certo modo, uma espécie de reconciliação com a má gestão que fazemos do tempo, concretamente com o flagelo do FOMO (fear of missing out), já que nos dá uma espécie de possibilidade de regresso à vida terrena para “acabar o que tínhamos que acabar” ou para “experimentar coisas novas”.

Mas tudo isto são derivações de uma questão mais fundamental: se afinal as nossas raízes judaico-cristãs são por demais evidentes – se não por convicção, pelo menos por osmose – qual será a relação possível entre o Cristianismo e a doutrina da reencarnação?

Enunciarei brevemente três pontos de reflexão como ponto de partida (outros mais poderiam ser chamados à equação), deixando o resto do caminho à consideração de cada consciência diante do seu próprio destino.

Em primeiro lugar: a reencarnação põe em causa a unidade da pessoa humana, como sujeito único e insubstituível diante de Deus. Esta doutrina, assente na ideia do ser humano como uma espécie de dualismo corpo + alma, acaba por desprezar o corpo, visto como uma simples roupagem periodicamente substituída e por isso sem valor, e reduz a alma a uma espécie de princípio que muda o seu modo de ser a cada existência, e cujo destino final parece ser a diluição em algo abstrato. Pelo contrário, para o cristianismo, a unidade e o valor insubstituível de cada pessoa devem-se ao facto de cada uma das suas dimensões ser amada e assumida por Deus (obedecendo à própria lógica da encarnação). Assim, o Homem é chamado à salvação na sua totalidade e de modo integral, e não como se tívessemos de “descascar” alguma parte de nós, deitando fora o que é menor.

Em segundo lugar: seria muito difícil enquadrar a figura de Cristo num esquema reencarnacionista. Basta imaginar o estranho que seria se a Sua encarnação não fosse mais que a reencarnação de um ser excecional, como uma espécie de avatar ou algum tipo de manifestação do divino, mas que permanece rigorosamente inscrito no ciclo de reencarnações. Isso prejudicaria o carácter único e definitivo de Cristo como mediador entre Deus e os Homens, e da Sua encarnação como grande revelação de Deus na História.

Em terceiro lugar: a doutrina da reencarnação traduz um movimento que vai do Homem em direção ao “divino” assente numa dinâmica voluntarista, que busca aproximar-se pouco a pouco da libertação suprema pelas próprias forças, numa espécie de pelagianismo cósmico que deixa pouco espaço à Graça. É a busca do Homem mais pela sua própria “pureza moral” do que pelo seu encontro com Deus, contrariando uma visão cristã que anuncia a prioridade de um Deus que busca o Homem (que nos amou primeiro) e que vai ao seu encontro para o atrair a Si.

Em jeito de conclusão, que é sempre uma janela aberta: ao contrário do modelo cíclico da reencarnação, a proposta cristã propõe-nos a ressurreição como destino último e definitivo da vida humana, convidando-nos a jogar mais perfeitamente um jogo de Amor que compreende a fragilidade das coisas e da nossa própria vida como bênção e caminho, e não como fatalidade a ultrapassar em nome de qualquer coisa que nunca será maior que a nossa relação com Deus.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.