Com o passar dos anos, a “primavera de Francisco” parece ter dado lugar a um sentimento outonal de morte iminente. Há um certo pessimismo generalizado quanto ao momento que a Igreja vive.
Às intrigas “vaticanas” de resistência às reformas do Papa soma-se a crise dos abusos, as tensões com aqueles que desejam o regresso de uma idade de ouro que nunca foi, as cumulativas polémicas “sinodais”, uma lenta – mas sempre crescente – irrelevância social e cultural (ainda que não do apostolado social), uma generalizada hostilidade ocidental à religião – ainda que não à espiritualidade –, a redução da celebração de sacramentos, o deserto vocacional. Há muito mais a acontecer na Igreja que poderia matizar este quadro, mas o sentimento dominante é o de fim de vida. Vive-se a iminência da morte.
Ao longo dos séculos, o óbito da Igreja foi declarado inúmeras vezes. Declarado, anunciado e proclamado. Contudo, e com uma teimosia a roçar a impertinência, a Igreja persiste. Não por causa da sua solidez, mas apesar dela. Para compreender este mistério e arriscar o futuro, proponho que recordemos a identidade deste corpo, que nos libertemos da narrativa do declínio, e que sejamos criadores de uma cultura de fermento.
Recordar a identidade deste Corpo
Durante dois milénios, muitos filhos da Igreja – e inúmeros dos seus detratores – professaram a sua fé na morte da Igreja. Sempre que o fizeram estavam, simultaneamente, justificados e equivocados. E isto por uma simples razão: ignoraram a natureza singular deste corpo. Não se pode declarar a morte de um ressuscitado. Um ressuscitado já derrotou a morte. É-lhe imune!
A Igreja nunca foi uma associação meramente humana, e ainda menos uma organização. A Igreja, Povo de Deus, é o Corpo Místico de Cristo. A Igreja é um corpo vivo, animado por uma força que não vem dela mesma, mas que é recebida como dom: o Espírito Santo. E contra o Espírito, a morte nada pode.
Se a Igreja não fosse assistida por Deus, já teria desaparecido. E isto não é razão para nos gloriarmos como Igreja, mas sim para refundar a nossa confiança em Deus. A Igreja está onde cada um dos seus filhos está.
As portas do Inferno, isto é, o mal, a morte, todo o pecado, inclusive a maquinação, o egoísmo, a inveja, a malquerença, não têm algum poder contra a Igreja de Deus. Estes somente corroem as estruturas e as práticas que, apesar do Espírito, insistimos em instaurar.
Se a Igreja não fosse assistida por Deus, já teria desaparecido. E isto não é razão para nos gloriarmos como Igreja, mas sim para refundar a nossa confiança em Deus. A Igreja está onde cada um dos seus filhos está. E persiste no tempo apesar de nós, porque ela é muito mais do que nós, é muito mais do que a soma das suas partes: é o Espírito que a congrega, a sustenta e a lança no tempo.
Compreendo que alguns aleguem que isto é mero espiritualismo barato ou superstição pura. Contudo, quando olho a nossa história e somo os vários episódios em que desmentimos com obras o Evangelho, em que pecámos como Igreja, em Igreja e contra a Igreja, sinto-me confirmado quando digo que a Igreja existe apesar de nós.
É extraordinário ver como, em todos os tempos, aos excessos de zelo ou de “mundo” na Igreja, o Espírito sempre respondeu despertando novas fontes de vitalidade evangélica. Foi para nos recordar o Evangelho que Deus suscitou os padres do deserto, os primeiros monges, as ordens mendicantes, as associações de fiéis, os movimentos laicais, e uma inumerável multidão de santos. E mesmo quando estes surgiram, discreta e silenciosamente, em ermos afastados dos centros de decisão, o Espírito Santo encontrou forma de que a sua luz tudo inundasse de claridade e colocasse a Igreja em movimento.
Não preciso de encontrar muitas razões para termos esperança no futuro, pois uma só é necessária: o nosso Deus nunca nos abandonará. Ele é fiel. O seu Espírito sempre nos sustentará. Da nossa parte, precisamos da coragem da docilidade à sua voz. De uma adesão, consciente e determinada, ao estilo de Jesus, sem recear arriscar o Evangelho a tempo e a destempo, porque um ressuscitado não pode ser morto: Ele vive para sempre, livre do pecado e da morte; liberto para a vida no Espírito (Rom 8, 2-4).
Libertar-se da narrativa do declínio
Não creio que atravessemos a maior crise da nossa história. Basta olhar os vários começos e recomeços da Igreja, as inúmeras perseguições, os sucessivos desencontros com o poder político, os recorrentes episódios de tensão interna, para cairmos na conta disso. A singularidade do atual momento está na consciência transversal que temos da crise, consciência essa que nos está a paralisar. Mas não tem de ser assim.
No mundo ocidental alimentamos uma certa narrativa do declínio, acompanhada pela nostalgia de uma ‘idade de ouro’ ficcionada, de um inócuo conforto nas raízes cristãs da nossa cultura e por uma mentalidade de gestão de danos. Os números denunciam a nossa irrelevância. Mas desde quando é que dependemos de números para ser relevantes?
No mundo ocidental alimentamos uma certa narrativa do declínio, acompanhada pela nostalgia de uma ‘idade de ouro’ ficcionada, de um inócuo conforto nas raízes cristãs da nossa cultura e por uma mentalidade de gestão de danos. Os números denunciam a nossa irrelevância. Mas desde quando é que dependemos de números para ser relevantes?
A fé – e a Igreja – não é a continuação de uma história. A fé é o encontro com Aquele que é e com o que há-de vir. Não desejemos ser uma Igreja que muda com a história nem impermeável à história. Sejamos uma Igreja que habita a história, sensível aos “sinais dos tempos”, mas prudente diante do “ar dos tempos”. Recordemos que não somos seres indiscriminadamente lançados no mundo, abandonados à sua sorte, mas filhos, desejados e queridos, de um Pai que nos convida ao eterno.
O futuro da Igreja não depende da conversão das estruturas, mas da conversão pessoal e comunitária. O futuro da Igreja não está encerrado nos conselhos pastorais, mas na fidelidade do povo de Deus. Nenhum gabinete nos dará o Espírito. É Ele quem se dá, para que todos O acolham. Temos de ser livres para O receber, e não reféns do contexto.
Criar uma cultura de fermento
Sem deixar de ter em conta a seriedade do momento, troquemos a narrativa do declínio por uma cultura de fermento. Arrisquemos caminhos imperfeitos. Arrisquemos fazer o trabalho indetetável do Espírito que tudo leveda, que tudo levanta para o Alto, sem calculismos.
Quem vive para os números, com os números morrerá. E o nosso Deus nada sabe de cálculos, como se vê quando abandona 99 ovelhas para ir atrás da que está perdida. Ou quando nos diz para perdoarmos 70×7. Ou quando paga salário completo ao trabalhador da última hora.
Deixemos de remendar a barca de Pedro. Esse trabalho é para o Espírito. Preocupemo-nos somente com uma coisa: há espaço para Jesus, mesmo que a dormir, na nossa barca? Se assim é, nenhuma tempestade nos fará naufragar.
Regressemos à Escritura, meditemo-la, apropriemo-nos dela. Deixemos que a Bíblia evangelize a nossa imaginação. E ousemos contar a história, a grande história, a mais bela história, a nossa história, a história de Deus connosco, que busca a Humanidade para fazer dela a sua família.
Deixemos de remendar a barca de Pedro. Esse trabalho é para o Espírito. Preocupemo-nos somente com uma coisa: há espaço para Jesus, mesmo que a dormir, na nossa barca? Se assim é, nenhuma tempestade nos fará naufragar.
Redescubramos a Liturgia, em toda a sua beleza e alegria, e não somente na sua solenidade. Deixemos que a Liturgia nos forme, rezando-a, habitando-a, e fazendo da nossa vida uma prolongada Eucaristia, em todos os seus momentos, bendizendo, pedindo perdão, escutando, professando, oferecendo, comungando e dando graças. E celebremos os sacramentos.
Reacendamos o fogo do serviço como dom de si mesmo. Não nos resignemos com dar o que nos sobra. Foi para a santidade que fomos criados. Que o nosso amor, entre nós e pelos outros, professado com obras, seja a grande evangelização. Evitemos a maledicência e a conspiração. Estes são pecados e desfeiam a nossa existência. Sejamos profetas, denunciando o mal e anunciando o Evangelho, criticando o pecado e salvando o pecador.
Não nos amedrontemos com o fim da cristandade. Se a houve, hoje em dia já não há uma contiguidade territorial da Igreja. Já não seremos um continente cristão, mas podemos ser um arquipélago luminoso, uma constelação de faróis, em que quando um se extingue, o corpo muda e redefine-se.
Uma só coisa é necessária
Testemunhar com obras, nutridos pela Sagrada Escritura e pelos Sacramentos. Aqui deve estar o nosso foco, disponíveis para o chamamento do Espírito. Ousemos ir além do mero sobreviver. Não fiquemos parados, imóveis, à espera de que o presente passe e nos leve com ele ou que, pelo menos, não nos atinja. Deixemos de rezar para que o presente não nos fira de morte, pois somos membros de um corpo ressuscitado. Não tenhamos medo de viver como ressuscitados.
O futuro não se cumprirá com planos. O futuro constrói-se com a nossa ousadia em entrar no abismo para o levedar. E sem medos, porque também aí encontraremos o Senhor.
Há que arriscar o anúncio, sem receio. Com confiança. E trabalhar com esperança, conscientes de quem somos: cuidadores da obra de Deus. Assim como o Senhor semeia, também a Ele e aos seus anjos caberá a colheita. Quanto a nós, preocupemo-nos com uma só coisa: anunciar o Senhor, até que Ele venha, com palavras e gestos que se entrelaçam no cumprimento de uma nova Criação.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.