Contos de fadas: uma leitura espiritual

«O mundo real não é assim», dirão; «as fadas não existem». Bem, estou disposto a conceder que — talvez — as fadas não existam no nosso mundo; mas, caríssimo leitor, é hora de saber a verdade: nós não somos deste mundo.

«Os contos-de-fadas são coisas para crianças» poderia ser uma daquelas frases que ouvimos ao ponto de vomitar, não fosse demasiado óbvia para que alguém sentisse sequer necessidade de a dizer. Quanto a mim, é uma frase absurdamente ridícula. “Ridícula” porque, de tão absurda, o riso é a única resposta racional; “absurda” porque, de tão ridícula, não se lhe pode inteligir o sentido. Poder-se-ia entrar nesta discussão, o que haveria de ser um texto muito interessante — e também muito distinto deste. Agora basta-nos pôr a descoberto o paradoxo levantado por C. S. Lewis: o desejo de ser “crescido”, esse sim, é deveras infantil.(nota1)

Em boa verdade, no que diz respeito aos contos-de-fadas — ou a qualquer outra obra de literatura infantil — o termo “criança” é extremamente ambíguo. Quantas vezes assistimos à excomunhão laetae sententiae de um livro pelo simples facto de ser «um livro para crianças»? Mas a verdade é que, quando declaramos na praça pública que fulano ou sicrano «parece uma criança», podemos estar a querer fazer uma de duas coisas: a primeira, que não abunda em cortesia, seria distribuir uma reprimenda por algum comportamento pouco digno; a segunda, mais bem simpática, é evocar aquele “coração puro” de que Cristo nos fala dos Evangelhos.

Por outras palavras, o termo “criança”, por si só, embora cismemos em usá-lo com algum tipo de valor moral, é uma palavra meramente descritiva — e, em (des)virtude de ser tão ambíguo, não chega sequer a descrever coisa alguma. «A Maria, ontem, agiu como uma criança», por exemplo, pode querer dizer uma multidão de coisas: terá ela perdoado os seus pais pela milésima injustiça desta semana, ou simplesmente amuado quando a sua tia a contrariou? Irradiou a alegria dos anjos pela simples doçura de um gelado, ou cuspiu a sopa pela sala toda? Olhou-nos com aquele olhar penetrante de quem nos vê a alma, ou deixou o ranho escorrer pelo pescoço abaixo? Se a única descrição que nos derem for «A Maria, ontem, agiu como uma criança», temo que iremos morrer sem saber a resposta.

Naquele convite evangélico — «se não fordes como crianças»… — é evidente que o Redentor não nos está a convidar a tocar à campainha e fugir (pobre S. Pedro, se o fizéssemos), mas a preservar aquele coração puro de quem vê a Deus. O ponto é o mesmo com os contos-de-fadas: poupem-nos, meninas, as vossas manias de se comportarem como princesas, mas nunca se esqueçam de que o vosso Pai é o verdadeiro Rei; quando forem acampar, não beijem os sapos que encontrarem, mas tenham um coração íntegro o suficiente para acolher um estranho; não andem por aí a plantar pés-de-feijão no quintal, mas desçam depressa e dêem com a vossa vida frutos de ouro.

Defendida a dignidade dos contos-de-fadas, demos um passo atrás. O que é um conto-de-fadas? É uma pergunta demasiado complexa e demasiado lateral para este artigo. (nota 2) A nós basta-nos saber que são histórias simples, com enredos diretos, sustentadas não pelo poder da pena e do papel, mas preservadas pelas avós que as ensinavam — quase religiosamente — aos seus netos. Que Ovídio tenha colocado a aventura de Orfeu em boa ou má poesia, pouco importa; a Madame Beaumont não inventou A Bela e o Monstro; os irmãos Grimm limitaram-se essencialmente a compilar narrativas suas contemporâneas.

Pôr por escrito as vozes das nossas avós pode ser uma inevitabilidade, mas nem por isso deixa de ter o seu quê de calamidade. Também nós havemos de ser avós e também nós teremos a missão de falar aos nossos netos do lobo mau e dos três porquinhos, do Polegarzinho e da pobre Cinderela. Mas não o poderemos fazer enquanto não deixarmos a nossa mente abrir-se às maravilhas do desconhecido. Como faz notar G. K. Chesterton, nos contos-de-fadas encontraremos um herói (ou heroína) jovial e virtuoso, ainda que todo o mundo se vire do avesso — o que é o mesmo que dizer «ainda que as abóboras se tornem em carros ou se encontre uma casa feita de doces».

Mas entrar num mundo novo — «nascer de novo» (nota 3) — requer abrir os olhos à imaginação. Talvez o Público ou o Observador nos mostrem o mundo real, e esperemos que o Ponto SJ nos mostre o mundo possível; mas precisaremos sempre dos contos-de-fadas — ou pelo menos das nossas avós — para vislumbrar o mundo dos impossíveis: onde os caçadores nos salvam intactos da barriga dos lobos e o nosso irmão mais cauteloso nos acolhe na sua casinha de pedra.

Enfim, sempre se pode olhar para o Evangelho e ver as tábuas da Lei; mas a Deus tudo é possível: levantar os paralíticos e abrir os olhos aos cegos; pôr em marcha os coxos e limpar os leprosos; abrir a boca aos mudos e alimentar as multidões… perdoar os pecados! Este é o mundo dos impossíveis, onde habita Deus — a Quem nada é impossível — e os Seus anjos, assim como todos os Santos e, creio, o capuchinho vermelho, o Joãozinho e a Margarida, o João Pé-de-Feijão, a Bela e a Cinderela… E nós havemos de nos juntar — se soubermos nascer de novo.

Poder-se-ia dizer que tudo isto não se trata de um conselho cristão, mas de uma criancice e alienação pegada. «O mundo real não é assim», dirão; «as fadas não existem». Bem, estou disposto a conceder que — talvez — as fadas não existam no nosso mundo; mas, caríssimo leitor, é hora de saber a verdade: nós não somos deste mundo. Fomos presos aqui, capturados, mas estamos de partida! Cativos em combate, não é condenável que sonhemos com a liberdade! (nota 4) Doentes terminais, é sumamente saudável que sonhemos com a Manhã da Alegria e a Carruagem da Meia-Noite!

Aliás, em boa verdade, seria um erro dizer que os contos-de-fadas nos alienam, como se, ao ensinar-nos que existem coisas como dragões, sereias, gigantes, pigmeus e fantasmas, nos estivessem a retirar deste mundo. Permitam-me citar alguns políticos contemporâneos portugueses quando exclamo que «é mentira»! Desde crianças que sabemos que existem dragões, fantasmas e outras criaturas mais poderosas e mais assustadoras… Basta, aliás, olhar para uma família “normal” e veremos quantos fantasmas e dragões a assombram, ainda antes da pobre criancinha nascer. «Os contos-de-fadas não dão à criança a ideia de fantasma. O que os contos-de-fadas dão à criança é a sua primeira ideia clara da possível vitória sobre o fantasma. O bebé conhece intimamente o dragão, desde que tem imaginação. O que os contos-de-fadas lhe proporcionam é um São Jorge capaz de matar esse dragão». (nota 5)

O medo e as trevas, enfim, nós já conhecemos. Somos todos intimamente pessimistas, pelo menos à nascença — estou, aliás, convencido ser por isso que começamos esta vida a chorar. O que nos vêm recordar os contos-de-fadas é precisamente «que esses terrores ilimitados têm limites; de que esses inimigos informes têm eles próprios inimigos; de que esses inimigos infinitos do homem têm inimigos nos cavaleiros de Deus; de que existe algo no universo mais místico do que as trevas e mais forte do que o medo avassalador». (nota 6)

Os contos-de-fadas não nos alienam. Como poderiam? Nós já fomos alienados, raptados. Cristo vem em nosso resgate. «O falso optimismo, a alegria moderna, cansam-nos porque nos dizem que pertencemos a este mundo. A verdadeira felicidade é não pertencermos. Vimos de outro lugar qualquer. Perdemos o nosso caminho».

É aqui, neste caminho de voltar, que entram os contos-de-fadas como leitura espiritual. Bilbo Baggins desejava chamar à sua obra There and Back Again; é precisamente esse o ponto. Se devemos voltar a casa — e a casa é Cristo, é a Igreja, são aqueles braços eternamente abertos e aquela barafunda desarrumada em perpétua arrumação —, devemos começar a caminhar. E, se devemos caminhar para fora deste mundo, fora deste mundo teremos o nosso caminho. (nota 7)

A este ponto, o leitor bem pode tirar o cavalinho da chuva. Não lhe vou dizer para ler as fábulas dos irmãos Grimm, nem os contos da Madame Beaumont. Não recomendarei nenhum mito, grego ou latino, nem tampouco — hoje e aqui, pelo menos — o tentarei coagir a ler As Crónicas de Nárnia, O Hobbit ou O Senhor dos Anéis. Vencerei a tentação de dizer: «Leia isto, que poderá sentir na pele como o nosso Deus é o Deus que faz maravilhas», ou «Veja aqui, como os pequenos prazeres da vida são sementes de vida eterna».

Não digo que não vá aprender uma grande lição de moral cristã com La Belle et la Bête! O ponto é que, como o expressa Chesterton, «ninguém vai a um bosque ter com uma ninfa; a pessoa vai, sim, na esperança de encontrar uma ninfa. Trata-se mais de uma aventura do que de um encontro marcado».(nota 8). A conclusão deste aforismo é simples: para apreender receitas e fórmulas, santa paciência, vá à prateleira de espiritualidade. Mas, para viver uma verdadeira — e talvez derradeira — aventura com Cristo, o meu bom conselho é: tire o pó daqueles livros estranhos e infantis, volte a olhar para a capa como se fosse a primeira vez e… até amanhã.

Será um longo caminho — cheio de perigos e aventuras, dragões e tempestades, amizade e feitiçaria, beleza e traições sem igual — e, no final de tudo, estaremos no mesmíssimo sofá, na mesmíssima cama, com os mesmíssimos problemas, apenas alguns instantes mais velhos. Mas é esse o caminho da oração, there and back again. Depois de derrotarmos o perigosíssimo Smaug ou de encontrarmos a galinha dos ovos de ouro, depois de nos perdermos na floresta ou de vencermos a guerra de Troia, depois de deixarmos um rasto de migalhas ou de quebrarmos um feitiço mais antigo que o sol… talvez tudo pareça o mesmo, mas algo mudou para sempre: nós mesmos.

Por outras palavras, teremos os mesmos pesadelos, navegaremos nas mesmas tempestades; mas com Beowulf já vencemos desafios maiores e em busca de Aslan já navegamos águas mais turbulentas. O mundo continua o mesmo e nós continuamos prisioneiros; mas agora sabemos que até uma trança de cabelo nos pode valer a liberdade, não importa quão alta seja a torre; não importa quão grande seja o gigante, sabemos que uma pedra e uma funda serão suficientes para o derrotar: qual Golias, qual David; qual pecado, qual Jesus Cristo, Senhor e Salvador.

 

Nota 1: Cf. C. S. Lewis. Three Ways of Writing to Children.

Nota 2: Para uma resposta séria e profunda, leia-se a conferência pronunciada por J. R. R. Tolkien, em 1939, na Universidade de S. Andrews, intitulada On Fairy-Stories.

Nota 3: Cf. João 3, 3.

Nota 4: Cf. J. R. R. Tolkien. On Fairy-Stories.

Nota 5: G. K. Chesterton. “A Avó do Dragão”, em Tremendas Trivialidades.

Nota 6: Ibidem.

Nota 7: Idem. “Balada de uma estranha cidade”, em Tremendas Trivialidades.

Nota 8: Cf. Idem. O Homem Eterno.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.