Como era no princípio, agora e sempre. Star Wars – uma (re)leitura cristã

Poder-se-á, com alguma razão, dizer que nada há de novo na história de Star Wars. O surpreendente em Star Wars, no entanto, não foi a história: foi a forma como George Lucas no-la contou.

Foi em 1977 o início da saga que mudou a história do cinema. Os seus efeitos especiais atraíram os olhares do mundo, mas foi a sua narrativa que nos cativou. Há histórias e histórias; há narrativas e narrativas. Poder-se-á, com alguma razão, dizer que nada há de novo na história de Star Wars: bons e maus, guerras, um herói à procura da sua identidade que acaba a salvar a galáxia… O surpreendente em Star Wars, no entanto, não foi a história: foi a forma como George Lucas no-la contou.

A história de sempre, contada de uma forma nova, é um convite a olharmos para os filmes de sempre de uma nova maneira. É precisamente isso que propomos aqui: um novo olhar, um olhar cristão, sobre aquela história que se passou há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante.

Naturalmente, spoilers ahead!

Primeiro Lucas, e depois a Disney. Guerra das Estrelas é uma história contada por camadas: a trilogia original – episódios IV-VI – foi a primeira a ser narrada; só depois George Lucas nos revelou os episódios I-III, e só então a Disney nos presenteou com os episódios VII-IX. Finalmente a saga está fechada; finalmente foi dita a última palavra. Cada trilogia – original, prequela e sequela – é uma nova camada na mesma história e deve ser interpretada assim mesmo. Uma leitura cristã só faz sentido se seguir esta mesma estrutura, e é isso que tentaremos fazer. Como pode a trilogia original mostrar-nos algo acerca da nossa vida cristã? Como pode fazê-lo a saga, interpretada à luz das prequelas? E, agora que a série está completa, o que nos dizem as sequelas? Por camadas foi feita, por camadas iremos. Prepare-se: vamos dar o salto para o hiperespaço.

 

De 1977 a 1983 – um protagonista em Igreja

Nos episódios IV-VI, tudo é muito claro. O nosso herói, Luke Skywalker, que aos poucos vai encontrando um mundo corrompido, governado por um Império que não está ao seu alcance, vai-se encontrando também a si mesmo. De Tatooine a Degobah, com Obi-Wan e Yoda, o jovem Luke luta um combate que, antes de ser exterior – que também o é – ocorre no seu interior. Ele, tal como o seu pai, Darth Vader, é uma personagem real. Ao contrário de Palpatine, que personifica o mal absoluto, ou até de Yoda, Luke e Vader têm um grande conflito interior: caminham sem certezas, num percurso com altos e baixos. É assim a vida espiritual: não há clareza; na maioria das vezes, não há certeza. Com altos e baixos, procurando vencer-se a si mesmo… é o percurso silencioso de um cristão.

Que Luke Skywalker esteja rodeado de amigos em quem pode confiar e Darth Vader se vá isolando não traz grande novidade a um cristão: que o bem gere comunhão e o mal nos isole não foi descoberta de George Lucas. Porém, aqui vemos algo mais: sozinho – sem uma comunidade – Luke nunca poderia ter sobrevivido. Sem Han Solo, nunca teria destruído a Estrela da Morte. Sem Obi-Wan Kenobi, sem Yoda, sem Leia… Luke nunca se teria vencido a si mesmo, salvo o pai, derrotado o Império. Connosco (não há muito tempo, mas agora; não numa galáxia muito, muito distante, mas aqui) acontece o mesmo. Sozinho, sem a Igreja, sem uma comunidade, um cristão nunca se poderá vencer a si mesmo.

Anakin não é um herói imaculado; é um herói real, que não só tem lutas interiores, como as perde e precisa de ser resgatado.

De 1977 a 2005 – a ovelha perdida

Olhemos agora as prequelas. Não podemos vê-las isoladamente: devemos reinterpretar toda a série. Já não temos o herói do costume, como nos originais. Longe disso, o protagonista da história torna-se Anakin Skywalker, Darth Vader. Começando a ver no episódio I, acompanhamos a história de Anakin desde muito novo até à sua morte (e “ressurreição”: não esqueçamos a forma como ele reaparece lado a lado com Yoda e Obi-Wan Kenobi), passando pelo seu treino, a sua paixão por Padmé, a sua queda, o nascimento dos seus filhos, os seus anos de vilania… e a sua reconversão. Não há dúvida que Anakin causou muita morte e destruição, mas, no momento final, em que se poderia ter fechado e ignorado o destino do filho, entrega a sua vida e salva a galáxia – dando-nos a primeira pista, ainda que incompleta, de que Palpatine mentira: afinal, o lado bom da Força pode resgatar uma vida.

O mal que Vader gerou não apareceu do nada, e este deve ser o grande alerta para nós, cristãos: Anakin falha por amor, amor verdadeiro. Contudo, ama desordenadamente, fica cego, afasta-se de todos os que o querem ajudar… e chega a destruir aquela que tentava salvar. Recordemos, porém, as palavras do Senhor: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão» (Lc 15, 7). O que nos diz S. Lucas, parece G. Lucas repeti-lo: Anakin não é um herói imaculado; é um herói real, que não só tem lutas interiores, como as perde e precisa de ser resgatado. Cristo fala do filho que diz sim e não vai, e do que diz não mas acaba por ir. Em Anakin Skywalker – como em cada um de nós – vemos ambos: dizemos que sim, mas acabamos por falhar; vivemos na nossa falha, mas acabamos por nos deixar guiar pelo olhar do Filho. I must save you!; You already have, Luke!.

 

De 1977 a 2019 – agora e sempre

Chegámos enfim às sequelas. O seu protagonista é a díade formada por Rey Skywalker e Ben Solo, que, em traços muitos gerais, nos recordam tanto Luke como Anakin (como Luke descende de Vader,  Rey descende de Palpatine; como Anakin se deixou seduzir pelo lado negro, acabando por regressar à luz, assim também Ben). Não esqueçamos, porém, a profecia deixada pelas prequelas, que haverá um Escolhido, nascido sem pai, e através do qual será restaurado equilíbrio definitivo na Força. Até a Disney nos dizer que a história não estava terminada, tínhamos tudo para crer que o Escolhido seria Anakin. Com Palpatine vivo, porém, não podemos dizer que o equilíbrio foi definitivo. Como podemos re-interpretar, então, a série?

Tudo nos leva a crer que, no final do episódio IX, houve finalmente o equilíbrio profetizado, que não fora concretizado por Anakin Skywalker quando, no episódio VI, pareceu ter morto o Imperador. Sejamos subtis: a profecia não diz que o Escolhido trará o equilíbrio, mas que através dele o equilíbrio será restaurado. Anakin, sendo realmente o Escolhido, não é o responsável último pela profecia. A própria Força trouxe equilíbrio a si mesma; a própria Força é o protagonista de toda a série. Anakin caiu e Palpatine não morreu com o fim do Império; a profecia, porém, graças à própria Força, foi cumprida.

Assim, tal como Rey e Ben, tal como Luke e Anakin, tal como Yoda e Palpatine, Maul e Obi-Wan, Qui-Gon e Dooku, todos somos colocados diante de Duas Bandeiras, uma boa e uma má. Sim, temos de decidir; sim, a nossa escolha é essencial! Mas, ao mesmo tempo, não somos nós o centro da nossa história. Tal como a Força soube trazer o equilíbrio tanto da linhagem de Skywalker como da de Palpatine, de tudo o nosso Deus tirará proveito.

As sequelas confirmam-nos o que as prequelas nos tinham apontado: Palpatine mentira. Não é ao lado negro que é possível salvar alguém da morte. Já Luke, salvando Anakin (ou Anakin, salvando Luke), no-lo tinham mostrado. Agora, a Força confirma-o em Ben, que, com o sacrifício da sua vida, resgata a de Rey.

 

Neste contar e recontar da saga, não tentámos fazer apenas leituras religiosas diferentes, mas uma única, uma releitura, que nos vá mostrando um crescente grau de maturidade cristã. E o maior é este: tal como a Força o fez há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, também o nosso Deus o fará no aqui e agora da nossa vida – por entre a nossa história, repleta de altos e baixos, está o Senhor Deus do Universo, que extravasa os nossos planos e predições, conduzindo a História. Em Guerra das Estrelas, o protagonista não é Luke e a sua vitória; Anakin e a sua conversão; Rey e Ben com a sua luta interior – o protagonista é a Força; o centro é a Força; que, sem nunca roubar a liberdade, conduziu misteriosamente o enredo. Assim, n’o aqui e agora, o Protagonista – que sabe actuar sem nos roubar os papéis e conduzir a História sem nos privar da liberdade – é Deus. Não nós: nem as nossas vitórias, derrotas e conversões, nem a nossa luta e unidade interiores. O protagonista, agora e sempre, aqui e em todo o universo, é o Senhor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.