Claudine Gay, wokismo e polilogismo

É exatamente o diálogo saudável que é urgente recuperar, não cedendo à velha tentação, tão soberba e contrária à necessária humildade académica, da imposição de uma perspetiva pela força ou por recursos não éticos.

O caso Claudine Gay, a ex-presidente da Universidade de Harvard que pediu a demissão por acusações de antissemitismo e plágio, colocou em evidência alguns desafios que a Academia atravessa atualmente. Eles ressuscitam alguns antigos antagonismos, como a luta de classes marxista, que substitui o diálogo social pela violência, e o polilogismo, para o qual a lógica do pensamento humano apresenta uma multiplicidade irreconciliável, consoante o grupo a que pertence.

Vamos aos factos. A primeira acusação a Claudine Gay, de antissemitismo, surgiu na sequência de violentos protestos anti-israelitas na Universidade de Harvard. Chamada a responder perante o Congresso norte-americano, à pergunta se “apelar ao genocídio de judeus viola as regras de Harvard sobre assédio, sim ou não?”, Claudine Gay respondeu que “pode ser, em função do contexto”, deixando no ar a ideia de que o apelo ao genocídio pode encontrar justificação nalgum contexto.

A segunda acusação a Claudine Gay, de plágio, enquadrava-se na falta de referenciação, nos seus artigos científicos, de material académico de terceiros, pecado capital na academia, e muito mais vindo da parte da presidente de uma das instituições mais prestigiadas do mundo.

Na sua defesa (publicada pelo New York Times), Gay assume claramente os dois erros, que reproduzimos (itálico nosso). Em relação ao primeiro:

Sim, cometi erros. Na minha resposta inicial às atrocidades de 7 de outubro, deveria ter afirmado com mais força o que todas as pessoas de sã consciência sabem: o Hamas é uma organização terrorista que procura erradicar o Estado Judeu. (…) Esqueci-me de articular claramente que os apelos ao genocídio do povo judeu são abomináveis e inaceitáveis e que utilizaria todas as ferramentas à minha disposição para proteger os estudantes desse tipo de ódio.

Em relação ao segundo:

Os meus críticos encontraram casos nos meus escritos académicos em que algum material duplicava a linguagem de outros académicos, sem a devida atribuição. Acredito que todos os académicos merecem crédito total e apropriado por seu trabalho. Quando tomei conhecimento desses erros, solicitei prontamente correções aos periódicos em que os artigos sinalizados foram publicados, consistente com a forma como vi casos semelhantes de professores tratados em Harvard.

No mesmo artigo, apesar de admitir os erros que levaram à sua demissão, Gay volta a brandir várias bandeiras do wokismo, colocando-se na posição de categoria oprimida a lutar pela libertação: mulher, negra, filha de imigrantes haitianos com uma agenda de diversidade. Claudine Gay posiciona-se como se tivessem sido estas bandeiras a conduzi-la à demissão, mas não foram. O que a conduziu à demissão foram atitudes que contrariam a posição de uma presidente de uma instituição universitária na defesa dos seus alunos e na sua própria credibilidade científica.

Neste último ponto, Gay acusa os “seus críticos” de a descredibilizarem, queixando-se do “escrutínio obsessivo dos seus trabalhos revistos por pares”. A revisão por pares destina-se a isso mesmo: por mais que nos custe, submetermo-nos a escrutínio revela-nos as limitações próprias, ajuda-nos a crescer, a melhorar, a perceber o rigor a que somos chamados, não só científico, mas também ético, o que neste caso em particular se revelou absolutamente necessário.

O caso Claudine Gay levanta o pano em relação ao clima de tensão não dialogante que se tem vindo a acentuar no mundo académico ocidental, contrariando a sua raiz de liberdade, baseada no debate entre distintas posições e tendo em vista não o consenso, mas o gosto pela própria diversidade, eixo da tolerância.

O caso Claudine Gay levanta o pano em relação ao clima de tensão não dialogante que se tem vindo a acentuar no mundo académico ocidental, contrariando a sua raiz de liberdade, baseada no debate entre distintas posições e tendo em vista não o consenso, mas o gosto pela própria diversidade, eixo da tolerância. É exatamente o diálogo saudável que é urgente recuperar, não cedendo à velha tentação, tão soberba e contrária à necessária humildade académica, da imposição de uma perspetiva pela força ou por recursos não éticos.

Ao terminar a sua defesa, Claudine Gay vai neste mesmo sentido, afirmando que “os campi universitários no nosso país devem continuar a ser locais onde os estudantes possam aprender, partilhar e crescer juntos, e não espaços onde se enraízem batalhas por procuração e arrogância política.”

Nesta sua nova etapa como docente de Harvard, possam Claudine Gay, Harvard e todas as universidades promover um novo estilo de conversação entre visões do mundo, fora do binómio (sempre violento e redutor) opressores e oprimidos, para dar lugar a um espaço dialético de encontro entre irmãos, que tudo o que desejam é contribuir, com tudo o que são, para uma melhor humanidade no tempo que lhes é dado viver.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.