Sempre me senti confortável entre cinzas. Não no sentido de desfrutar de sujidade ou algo semelhante, mas de observar situações da minha vida que me fazem recordar cinzas. A melhor memória que tenho é a fogueira de um acampamento. É muito difícil rivalizar este fogo, rodeado de conversas sinceras, risos altos e cheios, e até lágrimas pesadas, que noutras circunstâncias ficariam guardadas. E quando acontecia o silêncio apoderar-se da situação substituindo as vozes pelo estalar da madeira e a brisa no pescoço…era quase como se não houvesse sentido estar noutro lugar que não ali, junto do fogo.
Mas este é um cenário “agradável”, que pouco ou nada nos remete para as sombras da vida. Também é realista falar de cinzas num contexto de despedida. A perda de algo ou alguém não é um calor consolador, é um frio seco, que procura dentro de nós um espaço onde se instalar para provocar o maior dos danos. Não há como escapar, e, por mais corajosos ou destemidos que nos consideremos, a nossa fragilidade arranja sempre forma de se mostrar, demore o tempo que for preciso. É surpreendente refletir sobre a presença desta poeira nas nossas vidas, até porque enquanto cristãos, somos convidados a viver um período inteiramente dedicado à meditação e oração sobre as cinzas das nossas vidas: a Quaresma.
São dias complicados, porque não há ninguém que os possa viver por nós. O confronto imediato com o silêncio vai crescendo em intensidade, e a vontade de fugir é grande. Quantas vezes não nos deparamos com aquela bela imagem que temos construído de nós, da nossa “fé”. Certamente teríamos direito a ser expostos numa galeria se a Igreja de Jesus fosse um mero museu. Nós, na nossa humanidade, quantas vezes não caímos no erro de nos sentirmos tão dignos e cumpridores que rasgamos por completo a ponte que supomos ter com Deus. Queremos ser vistos a praticar as boas obras, oramos para sermos vistos a orar, cheios de gestos vazios que em nada nos aproximam da cruz. O “ar sombrio” de jejum que nos fala o evangelho (Mt 6, 16-18) é a máscara em tantas circunstâncias.
O confronto imediato com o silêncio vai crescendo em intensidade, e a vontade de fugir é grande. Quantas vezes não nos deparamos com aquela bela imagem que temos construído de nós, da nossa “fé”. Certamente teríamos direito a ser expostos numa galeria se a Igreja de Jesus fosse um mero museu.
Temos de ter força para querer mais que isto. Querer estar perto de Jesus! É urgente desfazer o conceito de um coração duro e indestrutível, onde não há espaço para crescer um amor real. Não podemos ter vergonha de confrontar as nossas falhas, porque a humildade é o caminho para a verdade. Estes dias de preparação para a Páscoa são o momento de (re)encontrar as nossas fragilidades e deixarmos que Deus nos encha de vida. Não podemos desistir daquilo que é a verdade da humildade, da alegria, da pureza e da entrega, tudo o resto é mundano e afasta-nos daquilo que mais importa.
E não há exemplo mais cru destas dificuldades do que aquele que encontramos nos jovens. Há tantas variáveis em jogo que acredito que ninguém se lembre ou tenha vontade de escrever sobre o assunto. Uma idade que deveria servir para conhecer Jesus, reforçar a oração e aprender a amar o próximo transformou-se num palco de divisão, segregação e cultura de imagem. Existem muros na estratificação social que encontramos em grupos de jovens, e sob a qual pouco ou nada se faz para educar os jovens no amor de Deus. Um segundo muro nas temáticas da sexualidade e dos abusos, que não são abordadas com clareza e geram dúvidas, que por sua vez geram mais discórdia. Um terceiro muro na conhecida cultura do descarte, que sempre existiu, mas foi multiplicada pelo efeito por vezes nefasto das redes sociais. E apenas abordo temáticas que se inserem na realidade à qual eu pertenço, porque eu (tal como maior parte dos jovens portugueses) não sabemos o que é viver uma guerra. Por todos estes motivos, os jovens continuam a ser presa fácil para serem rotulados por adultos como a “má geração”. Certamente não devem olhar muito ao espelho para verem o mundo que nos deixam. Os jovens precisam de compreensão, de sensibilidade, de paciência e muita escuta! Uma das coisas mais especiais que podemos encontrar nos jovens é que é neles que encontramos um genuíno desejo de encontro com Deus, mas esse desejo de encontro deve ser atendido de coração aberto, e não manipulado por quem se queira aproveitar disso.
Termino a reforçar a palavra que acho crucial para nos acompanhar nestes dias: humildade. Que nesta Quaresma exista a humildade de recolhermos as nossas cinzas e, no silêncio da oração, nos reconciliemos com Deus e aceitemos o desafio de viver cada dia a amar o próximo como Ele nos ama.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.